Com todo o requinte artesanal que o caracteriza, o detalhista Ang Lee prepara a jovem atriz de TV Tang Wei (fotos acima e abaixo), novata em cinema, para o complexo papel de uma menina que, por motivos ideológicos, se transforma numa Mata Hari. Meio trágica e meio cômica é a sua necessária iniciação sexual, quase cirúrgica, por meio de um colega do grupo por quem não sentia qualquer afeto. Na verdade ela nutre uma ligação de amor platônico com o lider da célula rebelde, interpretado por Leehom Wang, um rapaz novaiorquino que só começou aprender a falar chines aos 17 anos, e hoje é o mais celebrado ídolo da música pop asiática: seus 12 álbuns venderam mais de 10 milhões de cópias.
Como ela se fazia passar por uma mulher casada e insatisfeita como o marido sempre em viagens de negócios, não poderia manter a própria virgindade. Mais cedo ou mais tarde, o político colaborador com os japoneses a ser eliminado a levaria para a cama e aí ela, deveria aparentar prazer e paixão. Essa breve sinopse, no entanto, vale como as cartas colocadas à mesa de um jogo dramático que surpreende a cada minuto. O roteiro se baseia num conto de Eileen Chang (1929-1995), uma das escritoras mais populares do oriente e cinéfila confessa.
Ang Lee percebeu uma atmosfera cinematográfica nas entrelinhas da história, identificando uma forte presença de Hitchcock em “Um Corpo que Cai” (1958), com todo aquele jogo de ambigüidades e aparências que se anulam mutuamente. Mas preferiu o clima de “Suspeita” (1941), em que vítima e algoz parecem se amar de fato. Tanto assim que o clímax de “Desejo e Perigo” acontece exatamente durante o lançamento daquele filme em Xangai. Os personagens até entram no cinema em que o espetáculo estrelado por Cary Grant e Joan Fontaine se acha em exibição.
Mas a imagem abaixo remete irresistivelmente à preparação do ator teatral para a entrada em cena. No teatro tradicional da China e do Japão, a maquiagem serve tanto para exprimir a intenção das personagens quanto para esconder os sentimentos do ator.
Mas a imagem abaixo remete irresistivelmente à preparação do ator teatral para a entrada em cena. No teatro tradicional da China e do Japão, a maquiagem serve tanto para exprimir a intenção das personagens quanto para esconder os sentimentos do ator.
A influência do cinema ocidental, digamos, clássico é, portanto, inegável. Mas o que o diretor consegue obter dos intérpretes evidencia o seu estilo essencialmente minimalista, em que uma leve mudança de olhar pode sugerir turbilhões emocionais. Como enuncia o personagem de Tony Leung, a emoção que ali predomina é o medo. Num elogioso ensaio clássico de 1929 sobre o teatro oriental, o pensador e cineasta soviético Sergei Eisenstein se admirava com o papel dos elementos cênicos que, no ocidente se limitavam a emoldurar o drama:
“Voz, palmas, música, mímica, gritos do narrador e painéis coloridos são como os jogadores passando um para o outro a bola dramática e dirigindo-se para o gol, que é o atônito espectador” Como se tivesse essa observação como lema, Ang Lee nos oferece três motivos para embarcar nessa tragédia erótica e política admiravelmente construída.
“Voz, palmas, música, mímica, gritos do narrador e painéis coloridos são como os jogadores passando um para o outro a bola dramática e dirigindo-se para o gol, que é o atônito espectador” Como se tivesse essa observação como lema, Ang Lee nos oferece três motivos para embarcar nessa tragédia erótica e política admiravelmente construída.
O primeiro é a música do francês Alexandre Desplat (“O Curioso Caso de Benjamim Button”), com destaque para uma cena inesquecível, em que se organiza um confronto dramático e sensual entre a música chinesa e a japonesa. Lembram-se de Tchaikovsky na abertura “1812”, fazendo os hinos da Rússia e da França se chocarem? Depois, temos a fotografia do mexicano Rodrigo Prieto (“21 Gramas”), que “veste” os corpos nus e os rostos em close com sombras e cores enunciadoras de sentimentos indizíveis. E finalmente a direção de arte e figurinos de Lai Pan, que deu plena visualidade à Xangai dos anos 40 e seus habitantes. A trama poderia até se encaixar no modelo de film-noir predominante na época em que ela se ambienta. Como foi o trabalho de Harry Stradling Sr em “Suspeita”. Um excesso de sombras poderia até facilitar a produção, permitindo um figurino e uma cenografia apenas sugestiva. Mas o que vemos em “Desejo e Perigo” uma cidade solar e repleta de luz – o que nos obriga a enxergar os personagens e o mundo em que se movimentam por inteiro, sem meios tons, como se estivéssemos olhando pela janela de nossa casa.
Lust, Caution
(2007, China / EUA )
Leão de Ouro em Veneza 2007
estréia 15 /05/ 2009
Leão de Ouro em Veneza 2007
estréia 15 /05/ 2009
distribuição Europa Filmes
Direção de Ang Lee
Com Tony Leung, Tang Ewi,
Chiu Wai e Joan Chen
Chiu Wai e Joan Chen
Um comentário:
Luciano, apesar do cartaz à entrada do cinema ser o de "Suspeita", o filme exibido é "Penny serenade/Serenata prateada", de George Stevens, com Cary Grant e Irene Dunne. Neste momento, aliás, há uma interrupção brusca para entrada de propaganda japonesa, que irrita o público e o faz debandar. A espiã tem nítida preferência por melodramas (ver, no início, a imagem de "Casablanca" que a faz chorar). "Desejo e perigo" é de fato superior (por mais universal e abrangente, além de incluir a Política como face radicalmente oposta ao Desejo, já que este é individualizador enquanto ela seria mais impessoal)a "Brokeback mountain". Também nunca vi um filme beirar o explícito com tanta classe em cenas de sexo. E Tony Leung é um ator maravilhoso
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