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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

"A chave de Sarah", um surpreendente docudrama histórico de mistério e suspense

“A Chave de Sarah” poderia ser apenas mais uma obra sobre o holocausto, se não se constituísse numa contundente mea culpa da nação francesa sobre o assunto e sob a forma deste diferenciado filme histórico francês, escrito e dirigido por Gilles Paquet-Brenner. Ele reconstitui um episódio impressionante e muito pouco divulgado na história da França, que foi a entrega em 1942, de cerca de 10 mil judeus para os invasores nazistas, promovida pelas autoridades policiais do país. Aquela iniciativa do governo colaboracionista se revestiu de aspetos particularmente desumanos ao prender por vários dias a maioria dos cidadãos parisienses de origem judaica num ginásio esportivo, antes de deportá-las para os campos de concentração alemães.

A história é apresentada pela ótica de uma jornalista inglesa radicada em Paris, assim como é a atriz que a interpreta, a excelente Kristin Scott Thomas. Enquanto ela investiga o trágico acontecimento, ficamos sabendo como ele se desenvolveu e as coincidências que envolvem a família de seu marido que, por caso, se instalara desde 1942 no mesmo apartamento que pertencia a uma família deportada. Foi ali que aconteceu o detalhe horripilante ligado à chave e à Sarah que aparecem no título do filme. Esse dado de mistério e suspense, sobre o qual nada podemos antecipar, introduz uma dose de adrenalina, garantindo uma tensão contínua em a toda a narrativa. No elenco, além de Kristin Thomas destaca-se o trabalho da atriz infantil Mélusine Mayance, que vimos em “Ricky”.

A CHAVE DE SARAH
Sarah´s key
França, 2010, 111 min, 14 anos
estreia 25 11 2011
gênero história / suspense
Distribuição Imagem Filmes
Direção Gilles Paquet-Brenner
Com Kristin Scott Thomas e Mélusine Mayance
COTAÇÃO
* * *
B O M

É um filme de ficção? Ou seria um documentário? Não! É "O Céu sobre os Ombros"

Somente agora entra em cartaz "O Céu sobre os Ombros" que foi premiado como melhor filme no Festival de Brasília de 2010. Essa demora deve-se provavelmente à dificuldade dos exibidores em definir a obra como ficção ou como documentário. Ela é assinada por Sérgio Borges, mas foi produzida por um grupo de Minas Gerais chamado de o “Coletivo Teia”. Por isso teve o escandaloso custo de 200 mil reais, dinheiro que seria insuficiente até para realizar uma reportagem de casamento e que, no entanto, obteve o máximo da qualidade técnica que um simples equipamento digital poderia alcançar. O mais curioso a respeito do filme é que podemos acreditar quando ele se apresenta como um “híbrido” entre ficção e documentário − mesmo que esse conceito não tenha consistência no campo da teoria do cinema. projeto tem como ponto de partida a pesquisa para um documentário sobre três indivíduos − “não-atores” − de Belo Horizonte que tivessem trajetórias de vida tão diferenciadas que parecessem personagens de ficção: um transexual intelectual que se prostitui em tempo parcial; um angolano que se considera escritor, mas não consegue concluir um texto sequer; e um devoto de Krishna que, além dos empregos de cozinheiro e atendente de telemarketing, participa de uma torcida organizada de futebol. Em seguida os escolhidos interpretam a si mesmos em seus cotidianos. Sabe-se que quem não é ator profissional tem tanta dificuldade para “fazer o papel” de si mesmo quanto o de Hamlet. Há momentos, porém, de uma impactante impressão de realidade. Quando por exemplo, o angolano brinca com seu filho, ou na cena em que o transexual conversa com um cliente na rua. Na apresentação do “Hare Krishna”, por outro lado, percebe-se que uma pessoa pode passar o dia inteiro sem pensar, isto é, quase em estado de meditação: quando não está entoando um mantra (no templo ou ao telefone), ele está fritando pastéis ou gritando pelo seu time num estádio, em comunhão mental com a massa.
O resultado é de fato impressionante porque, para garantir a aparência de uma narrativa ficcional, a edição final tenta eliminar uma das marcas menos óbvias ainda que mais importantes para caracterizar o gênero documentário. Segundo o teórico Bill Nichols, na ficção (e no filme de Sergio Borges) é mais comum a montagem em continuidade, que opera para tornar “invisíveis” os cortes entre as tomadas. Já no documentário, predomina uma montagem de evidência, em que os cortes seguem a lógica de uma argumentação e não se acham presos à necessidade de dar a impressão de uma unidade temporal e espacial. Em suma, O CÉU SOBRE OS OMBROS nos mostra o comovente retrato de três personalidades estranhíssimas, que chamam atenção pela diferença, mas que têm um pouco de cada um de nós.

O CÉU SOBRE OS OMBROS
Brasil, 2010, 72 min, 16 anos
estreia 18 11 2011
Distribuição Vitrine Filmes
Direção Sérgio Borges
Com Everlyn Bardin, Edjucu Moio,
Murari Krishna, Grace Passô
COTAÇÃO
* * *
B O M

Na Cinemateca Brasileira, uma indispensável retrospectiva dos filmes de Tomu Uchida

Até 04 de dezembro, a Cinemateca Brasileira promove uma mostra de com os oito principais filmes do diretor Tomu Uchida, um dos grandes mestres do cinema mundial. As cópias em película vêm diretamente Fundação Japão, em Tóquio. Apesar de sua importância como artista, Uchida é um dos autores japoneses menos conhecidos no Ocidente. Em São Paulo, alguns de seus filmes foram exibidos nas antigas salas do bairro da Liberdade, nos anos 1960, conquistando a admiração de críticos e cineastas paulistas. Nascido em 26 de abril de 1898, Uchida começou sua carreira cinematográfica no início dos anos 1920, trabalhando como assistente de câmera e de direção. No início da década de 1950, ingressou na produtora Toei e realizou alguns de seus mais célebres filmes, filmes de samurais, gangsters e dramas, ou seja obras sempre impregnadas de niilismo e desencanto. A mostra exibe o policial Condenado pela consciência; a trilogia de samurais raramente apresentada Espada diabólica, adaptada de um folhetim do escritor Kaizan Nakazato; Estranho amor, experimento visual notável reunindo animação, teatro kabuki e dança butô; Hishakaku e Kiratsune, clássico dedicado à máfia yakuza, penúltimo filme do mestre; A lança ensangüentada (foto abaixo), autêntico “road-movie” samurai, protagonizado por um guerreiro e seu lanceiro, e Tragédia em Yoshiwara, uma das obras-primas do realizador, adaptação de uma antiga história do teatro kabuki.

"Inquietos": poema de amor e morte feito com senso de humor por Gus van Sant

Inquietos” é o trabalho mais poético e tocante de Gus Van Sant, cuja obra anterior foi o drama político “Milk, a voz da igualdade”. É preciso competência e coragem para fazer um filme sobre um casal de adolescentes que começa a namorar depois que a moça revela ao rapaz que só tem três meses de vida. Essa personagem é interpretada com elegância e refinamento por Mia Wasikowska, que foi a “Alice de Tim Burton”, e a tônica do filme se diferencia por completo do dramalhão tipo “Love Story”. Aliás, os namorados se conheceram num velório de um colega de enfermaria da garota, que o rapaz estava acompanhando sem ter sido convidado, apenas porque tinha uma fascinação bastante mórbida por aquele tipo de cerimônia.
O filme se inicia assim, meio como uma comédia de humor negro, com toques de ironia e surrealismo, porque o melhor amigo dele é o fantasma de um japonês que fora kamikase na 2ª Guerra. Para quem não se lembra, os kamikases eram os jovens pilotos suicidas que lançavam seus aviões sobre os navios de guerra americanos. Mas aos poucos o roteiro vai mudando de tom e se mostrando mais conseqüente, sério e sentimental, ao informar que o protagonista estava no carro em que seus pais morreram num acidente. Ele permanecera em coma por vários dias e, portanto, não pôde estar presente no enterro deles. A partir daí, ele passara a conviver com o tal fantasma, que de resto funciona como coadjuvante e permite que o diretor faça diversas e temerárias piadas sobre a morte. As melhores, porém, são veiculadas pelo próprio casal de namorados que, entre outras maluquices, tentam ensaiar, com fundo musical e tudo, a cena da morte da moça que deveria acontecer a qualquer momento. O tema central do filme está contido num diálogo que diz: “morrer não é difícil, amar é que é difícil”.

INQUIETOS
Restless
EUA, 2011, 90 min, 12 anos
estreia 25 11 2011
Gênero drama / humor negro
Distribuição Columbia
Direção Gus Van Sant
Com Henry Hopper, Mia Wasikowska,
Ryo Kase, Schuyler Fisk
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO

“O Garoto da Bicicleta” mostra que o cinema dos irmãos Dardenne segue em movimento

Para contrariar quem ainda acha que o cinema europeu carece de ação e envolvimento emocional, os cineastas belgas Irmãos Dardenne fizeram este admirável “O Garoto da Bicicleta”, um filme tão ágil que parece terminar assim que as linhas da história se apresentam. Eles prosseguem com uma de suas temáticas dominantes, que é a ambigüidade com a qual a espécie humana é capaz de tratar os seus rebentos, como vimos em “A Criança” (2005) e “O Silêncio de Lorna” (2008). Ou seja, um leque de afetos que vai do desprezo à veneração, passando pela crueldade. Assim como em outras ocasiões, seus personagens se movimentam como joguetes das circunstâncias até que o advento da maternidade modifica tudo.
Novamente eles constroem o roteiro apresentando as figuras centrais em pleno movimento e no ápice da agitação psíquica, para ir gradativamente dando-nos a conhecer de onde vieram e para onde querem ir. Neste caso, o protagonista absoluto, herói e condutor principal dos acontecimentos, é um garoto de 9 anos. Agressivo e insolente, ele foge do internato para encontrar o pai que o abandonara (Jérémie Renier) e acaba topando com a mãe que não esperava ganhar, interpretada pela luminosa Cécile de France. O moleque chega a ser antipático em sua agressividade e insistência, mas aos poucos vamos nos enternecendo com a sua força de vontade e entendendo as suas aparentes falhas de caráter. Inclusive, quando ele se envolve com a delinqüência, permitindo as surpresas preparadas para as sequencias finais.

O GAROTO DA BICICLETA
Le Gamin au Vélo
Bélgica/França/Itália, 2011, 87 min.
estréia 18 11 2011
gênero drama
Distribuição Imovision
Direção Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Elenco Cécile de France, Cyril,
Jérémie Renier, Fabrizio Rongione
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

"Os 3" de Nando Olival nos oferece um olhar desencantado sobre a juventude brasileira

Parece que foi ontem. Em 2001 Fernando Meirelles e Nando Olival dividiam a direção de “Domésticas” – o primeiro longa dramaticamente empenhado de Meirelles, que se tornaria mundialmente famoso com o seu trabalho seguinte, “Cidade de Deus”. E só agora, com o filme “Os 3”, Nando Olival voltou a dirigir. A idéia é boa, mas já apareceu quase igual numa realização mais bem resolvida. Ou seja, no longa experimental “O Amor Segundo B. Schianberg”, de Beto Brandt produzido no ano passado com apoio da TV Cultura. Os protagonistas de “Os 3” são uma moça e dois rapazes que estudam juntos e resolvem dividir um apartamento. Para os papéis, Olival escolheu intérpretes desconhecidos que, aliás, funcionam muito bem.
Um dos garotos se envolve afetivamente com a menina, até que um publicitário os convida para estrelar uma espécie de reality show mercadológico. Um conjunto de câmaras transmitiria ao vivo pela internet tudo o que os três fizessem ou deixassem de fazer no apartamento, no qual todos os objetos de cena estariam à venda. Este é quase o mesmo mote do filme de Beto Brandt: um ator profissional e uma artista plástica que não se conheciam são contratados para dividir um apartamento durante algumas semanas, enquanto várias câmaras aí escondidas registram tudo o que fazem ou deixam de fazer. Em seguida, o resultado desse registro foi editado para gerar o filme.
Na história de “Os 3”, por sua vez, tudo vai para o ar ao vivo, sem cortes – mas também sem script e, por isso, sem emoção e nem grende interesse. Até porque os “atores” só precisam sair do campo de visão das câmaras para viverem à vontade as suas vidas íntimas, que também não chegam a ser empolgantes. No começo a coisa vai bem, mas em pouco tempo a transmissão perde o atrativo. Então, para esquentar a audiência eles resolvem simular um relacionamento a três. E aí tudo começa a se complicar. O filme é correto e muito bem realizado do ponto de vista técnico, mas resulta frio e sem a adrenalina que se esperava de personagens tão jovens e descompromissados. Ou será que é justamente esse o recado de Olival? Num cenário armado para os três experimentarem o improviso da juventude, eles preferem a sensatez da maturidade. Ou seja, não conseguem agir sem um roteiro pré-estabelecido, como faziam os moços de outros tempos e lugares.



OS 3
Brasil, 2011, 79 min, 14 anos
estreia 11 11 2011
gênero comédia / drama / juventude
Distribuição Warner
Direção Nando Olival
Com Victor Mendes, Juliana Schalch,
Gabriel Godoy, Rafael Maia
COTAÇÃO
* * *
BOM

"Amanhã Nunca Mais" relata a odisséia de um homem comum em luta contra a metrópole

"Amanhã nunca mais" é o primeiro longa ficcional do multimídia Tadeu Jungle. O filme tem jeito de ter sido feito por um cineasta veterano porque de fato, desde os anos 1980, o diretor tem lidado com várias linguagens audiovisuais (vídeo clipes, comerciais, programas de TV, documentários, vídeo-arte etc) e agora estréia nessa modalidade pela porta da frente, numa produção de excelente nível. Em perfeita integração, a música tem a assinatura de André Abujamra e a fotografia de Ricardo della Rosa. O elenco tem Lázaro Ramos, Maria Luisa Mendonça, Luis Miranda, Milhem Cortaz e uma série de outros craques. O tema se resume ao período de algumas horas na vida de um anestesista preto e pobre, em sua luta para voltar pra casa com o bolo de aniversário da filhinha, numa cidade que parece ser São Paulo. Esse trajeto vira uma odisséia, porque ele precisa superar mais obstáculos do que aqueles 12 enfrentados por Hércules em toda a sua mítica existência.
Boa parte dos comentários afirma que o roteiro lembra “Depois de Horas”, porque a história se passa numa noite sem fim. E também “Sim Senhor” com Jim Carey e até “Acorrentados” (1958), com Sidney Potier, ou “Um dia de Fúria” (1993) com Michael Douglas. Quanto a isso (e inspirado pelo protagonista) só posso dizer não! Não é assim que se analisa um filme, buscando semelhanças com outros. O que este tem de específico é o estilo com o qual Tadeu constrói essa obra de suspense, tão angustiante quanto engraçada. Tanto que, num determinado momento começamos a achar que não haverá mais saída para o protagonista, e aí relaxamos, desejando que ele não consiga mesmo chegar ao seu destino. Afinal ele é um personagem muito menos dramático do que cômico – dada à sua forma quase mecânica e imutável de agir e à ausência da palavra “não” no seu vocabulário, em que, aliás, não existe duplo significado. Quando, por exemplo, ele quer saber em que trabalha uma moça que lhe pede carona, ela diz “eu faço programa” e ele pergunta “em que canal?”.
À primeira vista, a saga do médico que precisa lidar com mil probleminhas para entregar o bolo de aniversário na festa da filha, não tem nada de extraordinário: trânsito, chuva, carro sem gasolina, trombada com motoqueiro, colega mau caráter e chefe pior ainda são coisas que todo o mundo já encarou. Mas nunca todas assim, ao mesmo tempo. E principalmente por um personagem tipo “o bom caráter de plantão”, que apresenta enorme dificuldade em estabelecer limites em relação aos demais. Em função disso, (só para brincar também de caça às semelhanças) ele se parece um pouco com o inglês Jorge VI, de “O Discurso do Rei”, com gagueira e tudo. Mas o que identifica este filme é a linha construtivista adotada pelo diretor, explícita até no cartaz do filme, que só faz sentido depois de assisti-lo.
Tadeu Jungle já teve a fama de videomaker vanguardista e um tanto hermético, mas aqui ele revela a simplicidade e a paciência de uma mulher rendeira, ao bordar minuciosamente a sua trama, feita tanto de largas pinceladas quanto de figuras mínimas. Como é aquela minúscula pontinha de Lourenço Mutarelli, na cena em que aparece Paula Braun, com quem aquele autor e ator partilhou a tela de “O Cheiro do Ralo”. No enredo de "Amanhã nunca mais" não faltam private jokes e pistas falsas inseridas com sutileza quase subliminar, como o abaixo assinado que o herói assina sem ler, ou o som de gente fazendo sexo (ou seria de um filme pornô?) na casa da doceira onde ele passa para apanhar o melhor da festa. Tomara que esta experiência não seja apenas mais uma das freqüentes aventuras midiáticas de Tadeu porque, amanhã e daqui para frente, sim. Queremos mais!

AMANHÃ NUNCA MAIS
Brasil, 2011, 77 min, 12 anos
estreia 11 11 2011
gênero comédia / social
Distribuição Fox
Direção Tadeu Jungle
Com Lázaro Ramos, Maria Luíza Mendonça,
Fernanda Machado, Milhem Cortaz e Luis Miranda

COTAÇÃO
* * * * *
ÓTIMO

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

“A pele em que habito” é Almodóvar em sua melhor forma, rimando horror e humor.

Com “A pele em que habito” Pedro Almodóvar, se lança candidato ao rótulo de mais brasileiro dos cineastas espanhóis. Não por causa da sua obsessiva admiração pelo Brasil, especialmente pela MPB, mas por sua conduta assumidamente antropofágica – no sentido que Oswald de Andrade atribuía à palavra. Desta vez, ele nos induz a devorar iguarias das mais diversas e disparatadas, algumas até meio indigestas. O primeiro prato ofertado é um clima de ficção científica, com Antonio Banderas dando tudo de si no papel de um cirurgião plástico, em pausadas sequencias que parecem os velhos pseudo-documentários de Jean Manzon. Com a dignidade aparente de Montgomery Clift em “Freud Além da Alma” (John Huston, 1962), Banderas passa pelas costumeiras cenas de conferência na universidade e detalhes de um laboratório high tec, onde ele fabrica uma pele humana transgênica desenvolvida a partir do couro de porco.
Por trás disso já se insinua como prato principal o sarcasmo servido ao molho de ironia, tão própria do diretor ao armar anedotas e reviravoltas que só farão sentido na segunda parte do filme. Só aí será possível perceber o verdadeiro sabor de algo que, sem saber, estávamos mastigando desde o início. Da mesma maneira, para não estragar surpresas, diremos apenas que o roteiro trabalha com os limites da ciência e da ética em relação à transexualidade e a transgênese. Nesse ponto, o banquete vai ficando sombrio, enquanto vemos que o brilho e a limpeza no mundo exterior do médico é apenas uma couraça apolínea para esconder o seu espaço interior, cheio de ódios e desejos recalcados.
Os film-noir dos anos 1940 se aprofundavam nessa contradição, mas saíram de moda antes que os cineastas pudessem atingir os abismos mais secretos da alma humana. É justamente o que pretende fazer Almodóvar, acrescentando mais temperos ao caldeirão. Ele abocanha e engole referências da literatura clássica e gótica, imaginando uma integração de um mito do tempo antigo (Pigmalião) com uma lenda moderna (Frankenstein), num enredo que esbarra em figuras-chave do romantismo como o Conde de Monte Cristo e o Máscara de Ferro. Logo de início se percebe que o personagem de Banderas é mais monstro do que médico, porque há anos mantém uma bela mulher presa em sua clínica – alguém que, depois de retiradas as ataduras do rosto, se mostra idêntica à esposa do cirurgião, morta num acidente. Para não enlouquecer naquela prisão aparentemente elegante, ela pratica yoga no estilo Ayengar que aprende pela TV e recusa as doses de ópio que o dono da casa lhe oferece – mostrando que está empenhada em adquirir autocontrole e equilíbrio.
Em geral os professores de roteiro desaconselham os flashbacks por interromperem o fluxo da narrativa. Mas Almodóvar está cima das técnicas de redação e a trama central vai se revelando por meio de dois flashbacks orquestrados com mão de mestre. O primeiro deles desperta o interesse para o segundo, como se fossem dois capítulos de novela, ainda que cada um dos dois seja construído a partir do ponto de vista de personagens diferentes. Em sua espinha dorsal, o roteiro adota uma estrutura de filme de horror e suspense. Na verdade, porém, o repertório desses gêneros serve de material básico para este pot-pourri, ou melhor, dessa paella de paródias preparada por Almodóvar. Por exemplo: por meio do melodrama, ele brinca com o humor de Hitchcock, devolvendo-lhe uma piada – ao inverter a própria inversão estilística de “Psicose” (1960), pela qual o assassino se transforma em protagonista.
E desta vez, não apenas ouvimos uma canção brasileira incorporada à trama, mas a adoção do nome Vera Cruz para designar a prisioneira e a ação de um personagem nascido no Brasil. Trata-se de um bandido que cresceu numa favela e é interpretado por um ator se esforçando para falar espanhol com sotaque carioca. Outro dado curioso é a obscura canção chamada Pelo Amor, cantada num português incompreensível. Ela foi tirada de “Os Bandeirantes”, um filme praticamente desconhecido que Marcel Camus fez no Brasil dois anos depois de “Orfeu Negro”. Junto com a desconcertante surpresa final, eis a sobremesa nesta comilança antropofágica de Almodóvar.


A PELE QUE HABITO
La piel que habito
Espanha, 2011, 133 min, 16 anos
estreia 04 11 2011
gênero drama / fantasia / suspense
Distribuição Paris filmes
Direção Pedro Almodóvar
Com Antonio Banderas, Elena Anaya,
Marisa Paredes, Jean Cornet
COTAÇÃO
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ÓTIMO