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quinta-feira, 23 de junho de 2011

"Venus Negra": aprimoramento estético de uma forma inaugurada nos anos de 1960

"Venus Negra" é aquilo que podemos chamar de um docudrama em primeira pessoa, isto é, a dramatização dos fatos documentados de uma determinada biografia, a partir do ponto de vista do biografado. Mais ou menos, como um aprimoramento estético na forma como trabalhava Roberto Rosselini nas obras desse gênero que dirigiu para a TV italiana entre 1966 e 1976: menos investimento na descrição no ambiente histórico do que na abordagem conceitual do tema. A protagonista se acha presente em todas as cenas, mesmo na inicial em que vemos apenas um pedaço de seu corpo preservado em formol e observamos a sua aparência física registrada em desenhos e num molde de gesso. E na penúltima em que seu corpo é dissecado no Instituto de História Natural de Paris, em 1815. Porque a última, de caráter documental e contemporâneo, mostra o presidente da África do Sul recebendo festivamente os restos mortais de Saartjes Baartman − o verdadeiro nome da personagem conhecida como Venus Hotentote. Em 1808 ela era apresentada em Londres, como atração de circo: uma mulher-fera de nádegas descomunais.
A sociedade britânica processou o empresário e este se mudou para Paris, onde o espetáculo desandou e ela foi obrigada a se prostituir para sobreviver. Essa dolorosa narrativa se estende por 180 minutos, dividida em longas sequencias − como o espetáculo londrino e o julgamento, filmadas quase em tempo real. Por vezes, a ligação entre elas não se faz de modo aristotélico, ou seja, em termos de uma linha dramática. As coisas mudam de repente e sem explicações no diálogo, como por exemplo, o seu ingresso na prostituição. De fato, o que unifica todas as cenas é o rosto da atriz Yahima Torres, quase sempre exprimindo tristeza, desânimo e um constante estupor alcoólico. Mesmo quando sai às compras, bem vestida e acompanhada por dois valetes a seu serviço. No único momento em que verbaliza contrariedade, ela diz que sente falta de beleza naquilo que faz e exprime essa revolta cantando uma canção de sua terra.
Saartjes bebe demais porque não consegue de adaptar ao mundo europeu e nem sonha em voltar para o seu país porque todos os seus parentes estão mortos e, provavelmente, os valores da cultura abandonada já não fazem sentido. Estamos falando, no entanto, de uma construção cinematográfica e não da Saartjes real, sepultada no século XIX. Na passagem do julgamento, se percebe a astúcia do diretor Abdellatif Kechiche (“O Segredo do Grão” - 2007) ao enfatizar o procedimento de encenação, produzindo um efeito equivalente àquilo que Bertolt Brecht chamava de “afastamento”. A personagem afirma que não é uma escrava e recebe salário. Aquilo que parece um ato de degradação é, na realidade, uma farsa que ela interpreta para ganhar dinheiro.

Ela repete várias vezes que é uma atriz e está interpretando, de modo a que isso fique bem claro – para os demais personagens e para nós, que nos compadecemos da moça e somos levados a condenar todos os que no filme a exploram como aberração da humanidade. Não apenas os responsáveis pelo show, mas também os cientistas que a utilizam para – décadas antes de Darwin publicar a teoria da evolução – apontar semelhanças corporais mais marcantes entre os humanos e os símios. Sabiamente o cineasta se exime de julgar aquelas figuras do passado. Talvez porque, além de ser esta uma tarefa inútil, ele esteja mais interessado em que façamos a nossa própria assimilação do que revelou, e encontremos as possíveis ligações entre a exclusão tal como era há dois séculos e as formas pelas quais se manifesta atualmente.

VÊNUS NEGRA
Vénus Noire
Bélgica/França/Itália, 2010, 164 min, 16 anos
estreia 17 06 2011
gênero docudrama / história
Distribuição Imovision
Direção Abdellatif Kechiche
Com Yahima Torres, Andre Jacobs,
Olivier Gourmet, Elina Löwensohn
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO

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