A sociedade britânica processou o empresário e este se mudou para Paris, onde o espetáculo desandou e ela foi obrigada a se prostituir para sobreviver. Essa dolorosa narrativa se estende por 180 minutos, dividida em longas sequencias − como o espetáculo londrino e o julgamento, filmadas quase em tempo real. Por vezes, a ligação entre elas não se faz de modo aristotélico, ou seja, em termos de uma linha dramática. As coisas mudam de repente e sem explicações no diálogo, como por exemplo, o seu ingresso na prostituição. De fato, o que unifica todas as cenas é o rosto da atriz Yahima Torres, quase sempre exprimindo tristeza, desânimo e um constante estupor alcoólico. Mesmo quando sai às compras, bem vestida e acompanhada por dois valetes a seu serviço. No único momento em que verbaliza contrariedade, ela diz que sente falta de beleza naquilo que faz e exprime essa revolta cantando uma canção de sua terra.
Saartjes bebe demais porque não consegue de adaptar ao mundo europeu e nem sonha em voltar para o seu país porque todos os seus parentes estão mortos e, provavelmente, os valores da cultura abandonada já não fazem sentido. Estamos falando, no entanto, de uma construção cinematográfica e não da Saartjes real, sepultada no século XIX. Na passagem do julgamento, se percebe a astúcia do diretor Abdellatif Kechiche (“O Segredo do Grão” - 2007) ao enfatizar o procedimento de encenação, produzindo um efeito equivalente àquilo que Bertolt Brecht chamava de “afastamento”. A personagem afirma que não é uma escrava e recebe salário. Aquilo que parece um ato de degradação é, na realidade, uma farsa que ela interpreta para ganhar dinheiro.
Ela repete várias vezes que é uma atriz e está interpretando, de modo a que isso fique bem claro – para os demais personagens e para nós, que nos compadecemos da moça e somos levados a condenar todos os que no filme a exploram como aberração da humanidade. Não apenas os responsáveis pelo show, mas também os cientistas que a utilizam para – décadas antes de Darwin publicar a teoria da evolução – apontar semelhanças corporais mais marcantes entre os humanos e os símios. Sabiamente o cineasta se exime de julgar aquelas figuras do passado. Talvez porque, além de ser esta uma tarefa inútil, ele esteja mais interessado em que façamos a nossa própria assimilação do que revelou, e encontremos as possíveis ligações entre a exclusão tal como era há dois séculos e as formas pelas quais se manifesta atualmente.
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