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sábado, 18 de maio de 2013

"A História no Cinema": preciosa coletânea de filmes de Roberto Rosselini em DVD


Lançada pela Versátil uma caixa com três DVDs de Roberto Rosselini sob o título de “A História no Cinema”. É na verdade uma amostra da maneira como o mestre do neorrealismo concebia o filme histórico. Em julho de 1963, numa entrevista para a revista “Cahiers du Cinema” nº 145, ele declarou que daí em diante só faria filmes didáticos. De fato, em seguida ele praticamente abandonou o cinema para se dedicar à TV pública, onde realizou uma dúzia de obras desse gênero. A primeira foi o surpreendente “A Tomada do poder por Luiz XIV” (abaixo) de 1966, um dos discos desta antologia. Nela está incluída a experiência precursora desse ciclo, que foi “Viva a Itália” (acima) de 1961, que mostra a conquista da Sicília por Giuseppe Garibaldi. Seu ponto alto, no entanto, é a minissérie em 3 episódios “A Era dos Medici” de 1973, sobre o Renascimento em Florença.
Nesse projeto, Rosselini coloca em prática o que poderia ser chamado de “estética da televisão”, ou seja, um estilo originado pelas limitações técnicas e financeiras da indústria televisiva daquele tempo. Na emissora estatal não era mais possível reconstituir batalhas campais, nem os bombardeios sobre a cidade de Palermo, que aparecem em “Viva a Itália” (abaixo) – uma superprodução planejada para homenagear o centenário da unificação italiana. O mais marcante naquele filme épico e patriótico é a preocupação em manter os princípios do neorrealismo que o próprio cineasta havia ajudado a fundar 15 anos antes, com “Roma Cidade Aberta” (1945). Dessacralizado, o herói é reconduzido à sua condição humana e, na qualidade de personagem, é colocado no mesmo patamar da plebe que lutava ao lado dele. Nesta outra obra da coletânea, o diretor procura manter a âncora no realismo, permitindo que Garibaldi brilhe com algumas de suas frases célebres, ainda que o foco da ação permaneça no coletivo.
Em “A Era dos Médici”, como quase tudo o que se fazia na TV da época, a ideia era sempre maior que os recursos disponíveis. Assim, em lugar de grandes astros, temos figurantes falando com a voz de dubladores profissionais. Em vez de investir em cenografia, recorre-se a locações nos majestosos monumentos históricos de Florença. E aí, sem tecnologia para a criação de paisagens sonoras, usa-se muita música ambiental para sugerir os climas emocionais. Há uma curiosa passagem em que a edição mantém o som de um coro de monges rezando em latim, como fundo de uma discussão filosófica sobre arte e política. Não dá muito certo, por causa das limitações técnicas na mixagem da época. Mas a concepção é surpreendente. 
Sem equipamento para longos travellings de câmara, aproveita-se repetidamente o movimento das panorâmicas e do zoom. Além disso, boa parte da narrativa fica mais na fala dos personagens relatando os acontecimentos uns para os outros, do que na reconstituição física dos fatos. Esse dado também pode ser visto como uma herança do rádio, do qual a TV se origina – não apenas como mídia, mas como organização social (RAI - Radiotelevisione Italiana). Num determinado diálogo, por exemplo, Rosselini aborda a transformação do conceito de “usura” pela noção de lucro – então uma novidade. Um príncipe católico definia o imposto como uma “multa pelo pecado da usura”. Trata-se, portanto, de um cinema mais épico do que dramático, mais sociológico do que psicológico. 
A sofisticação exibida na série “A Era dos Médici” ficava por conta do luxo dos figurinos. Note-se, por exemplo, a variedade de roupagens dos religiosos na cena do Concílio de Trento. O requinte da direção se manifesta também no gestual das figuras que se diferenciava radicalmente do atual – algo que a maioria dos filmes históricos americanos ignora por completo. O costume das mesuras para com indivíduos de status mais elevado, os modos de usar as mãos em função das roupas, e até o hábito de tirar as botas ao entrar em ambientes fechados ajudam a colorir o painel cultural da época. Rosselini se preocupa até com a atitude corporal do “homem do renascimento”, que recusava a especialização do conhecimento e experimentava a maior variedade possível, sem diferenciar a arte da ciência ou o trabalho do lazer.
Mesmo com todas essas dificuldades, Rosselini consegue explicar as transformações econômicas e culturais que ocorreram no século 15º da Renascença italiana – como o contato com as civilizações orientais e a consequente retomada da arte clássica e da filosofia dos antigos gregos. A ascensão social e política da burguesia são descritas junto com o enfraquecimento das nobres corporações e seus segredos guardados a sete chaves, como o da fabricação da seda subtraído dos chineses. Vemos como estas associações de artesãos recorriam até à violência na tentativa de frear o seu declínio – oferecendo um curioso palpite sobre a origem medieval da Máfia e da Maçonaria, com vendetta e tudo. Mostra-se a centralização dos núcleos políticos, ou seja, das cidades-estados, acompanhada pelo mecenato que valorizava as artes, numa inédita associação entre riqueza, saber e poder.
Um detalhe que pode escapar aos contemporâneos é que, ao lado dos intelectuais e artistas, os heróis do filme são os mercadores – a classe social que então se achava à frente das grandes transformações históricas. Rosselini exibe essa “burguesia a cavalo” em belíssimas externas, com um fervor épico digno de Eisenstein, se este pudesse ter filmado em cores. Outro pormenor que não escapa ao mestre: no século XV, portanto, cem anos antes da Reforma, os negociantes florentinos eram muito mais éticos e sérios que os ingleses – famosos por serem dados a ardis e falcatruas.
Nessa magnífica aula sobre a passagem do mundo medieval para o moderno, torna-se clara a ligação entre o avanço no conhecimento da geometria e da cosmologia, as grandes navegações que aconteceriam no século seguinte e a ideia de que o homem é o centro do universo. Em suma, Rosselini (abaixo) filma o humanismo renascentista, concretizando a sua proposta de cinema científico e didático que, afinal, encontrou melhor abrigo na televisão do que no mercado cinematográfico. Desapontado com os caminhos estéticos do cinema, que se aproximava cada vez mais da indústria e do comércio, Rosselini preferiu agir no sentido de civilizar esse meio gelado de comunicação que era a TV, ajudando-a a se abrir um pouco mais para a arte e o conhecimento. 

Um comentário:

Enaldo Soares disse...

É uma pena que parece estar muito acima da empatia média dos alunos. Mas acho que é uma boa aquisição para professores de História, como eu.