Acaba de ser lançado em DVD a obra prima de
Ingmar Bergman premiada com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1983. É
“Fanny & Alexander”, numa edição luxuosa, remasterizada e em duas versões –
a do cinema e a original, produzida como minissérie para a TV. Escrevi a
crítica do filme em seu lançamento, e reproduzo aqui o texto que
publiquei na Folha de São Paulo, em 23 de dezembro de 1983.
Bergman nasce de novo e, após 42 filmes
e 65 anos de idade, exibe uma fé absolutamente renovada nos poderes da vida e
da arte. “Fanny & Alexander” nada tem de obra derradeira, trabalho que o
cineasta realiza para encerrar um ciclo, ou testamento artístico de um criador
cansado. Tudo no filme é novo e aponta para caminhos recém-descobertos, como se
Bergman sonhasse com mais 65 anos de existência ou tivesse despertado para o
pouco que lhe resta para viver. Ele inclusive elege uma nova musa, atriz que
como fizeram antes Harriet Andersson, Bibi Andersson, Käbi Laretei e Liv
Ullman, chega para trazer inspiração ao diretor e energia vital para as
personagens por ela vividas. Trata-se de Ewa Fröling, vibrando de sensibilidade
e elegância no papel da mãe de Fanny e Alexander, jovem protagonista do espetáculo.
A história começa em Uppsala, no natal de 1907, e o garoto Alexander (Bertil
Guve) é, sem dúvida, um alter ego do próprio diretor. O filme inclui um evidente
elemento autobiográfico e mostra uma espécie de batalha entre o puritanismo e a
sensualidade. O grande vilão do filme é o bispo Vergerus (Jan Malmsjo) padrasto
de Alexander que disfarça seus impulsos sádicos e autodestrutivos com uma
furiosa mania de frugalidade e religião, obrigando Alexander a um desagradável
e inumano exercício de ascetismo. O menino, no entanto, fora criado na casa da
avó (Gun Wallgren) uma atriz abastada que vive longe dos preconceitos e da
mesquinharia, mantendo um longo caso de amor com um judeu amigo da família, o
comerciante Isak (Erland Josephson).
O antagonismo é constante no filme: de um lado o puritanismo desumano e
hipócrita, corporificado na pessoa do bispo Vergerus, seus familiares e sua
casa gelada, carente de móveis e de decoração; de outro, o prazer da vida,
simbolizado pelas fartas refeições, pelo bom-humor e pela liberação sexual que
reinam na casa da avó, uma mansão cuja barroca opulência pouco tem a ver com a tradição
sueca. O pai do pequeno Bergman era pastor protestante e, várias vezes, o castigou
trancando-lhe num armário. Agora, o garoto Alexander, dono de uma imaginação
que não se contenta em permanecer presa, sofre a humilhação de ser chicoteado e
pedir desculpas pelas coisas que inventa, como se fossem mentiras ou ofensas à religião
e a Deus. A maneira como ele enfrenta o bispo, seu inconfundível inimigo desde
o início, é talvez o lance mais surpreendente da história, revelando o fascínio
que Bergman sempre teve pelo sobrenatural.
Os terrores infantis são aqui reproduzidos com uma acuidade nunca vista no cinema.
Eles servem para que o cineasta possa exorcizar as ideias religiosas que tanto
o atormentaram. Numa sequência em que Alexander está refugiado na casa de Isak,
por exemplo, ele vê uma porta se abrir e pergunta “quem está aí?” Apavorado,
ouve uma voz que reponde: “Deus! Meu rosto não pode ser visto por nenhum mortal!”.
A porta se abre e o terror de Alexander se dissipa quando percebe que a voz vem
de uma marionete que desaba no chão. Metáfora perfeita para o próprio movimento
interior do cineasta.
Um comentário:
Há décadas ouço falar de Fanny & Alexander. Minha irmã amava este filme, mas só hoje eu o assisti. Que maravilha! Que prazer imenso acompanhar cada passo novo que sua história revela, e de uma maneira belíssima. E como é bom ler uma crítica escrita por alguém que também amou este filme e soube escrever tão bem sobre ele. Obrigada!
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