A memória do que vivemos não vem a nós formatada em
sequencias de cinema. Ainda assim, alguns dizem se lembrar de um acontecimento
como se ele passasse como um filme em sua cabeça. Deve haver aí um exagero,
porque os registros individuais do passado costumam nos atingir sob a forma de flashes,
sensações difusas, fragmentos de situações, frases soltas – ou seja, um
repertório fragmentado de imagens e informações, entre as quais as dores e o
sofrimento tendem a se esmaecer, ou ganhar a moldura compensatória das racionalizações.
Por isso, escrever um roteiro de cinema em primeira pessoa deve ser penoso,
como um tratamento psicanalítico em que dezenas de sessões acontecem condensadas
numa só. Isto é, por mais coerente e organizado que possa parecer, um conjunto
de recordações e um roteiro de filme histórico constituem duas coisas
absolutamente diversas.
Ao assistirmos um filme como “Cara ou Coroa”, por exemplo,
é possível experimentar uma enganosa sensação de que aquela narrativa tivesse
baixado por inteiro, como um download, na mente do roteirista. O cineasta
paulista Ugo Giorgetti tinha 29 anos quando atravessou a época abordada no longa
por ele lançado em 07 de setembro de 2012. O ano era precisamente 1971, quando
o grupo teatral americano The Living
Theatre foi preso em Ouro Preto pela ditadura militar. Este é o fato
histórico que serve de baliza cronológica para a o filme e, em torno do qual,
se elabora um quadro social e dramático capaz de representar aquele período.
Construídos
com matéria prima historicamente real, uma série de personagens dará corpo à
trama: um grupo teatral financiado pelo PCB prepara uma peça politicamente
engajada. O diretor do espetáculo (Emílio de Mello) e seu irmão (Geraldo
Rodrigues) são convencidos pelo dirigente do partido a conseguir um esconderijo
para dois companheiros que agiam na clandestinidade. Namorada de um deles, uma
estudante (Julia Ianina) resolve escondê-los no porão da casa onde vive com o
avô, um general da reserva (Walmor Chagas). Como anteparo cômico e afetivo
dessa quase talvez desgraça, há um chofer de praça (Otávio Augusto), tio dos
rapazes, e a sua abnegada esposa (Thaia Perez).
O filme é essencial para quem
quiser partilhar sentimentos e sensações sobre os chamados “anos de chumbo” com
aqueles indivíduos. Ou, para quem não consegue mais se lembrar dos nomes, ou da
aparência dos que fizeram parte da sua experiência real. Nenhum dos que
aparecem no filme teve seu rosto estampado nos cartazes pelos quais o regime
divulgava os seus “procurados” e nem foi trocado por embaixadores sequestrados.
Eles apenas davam uma força para quem “pegara em armas” e assistiam apavorados
à escalada da tortura e da violência por parte da repressão. E por isso, representam
a maioria dos jovens que, assim como eu e, talvez, o diretor e roteirista do filme,
testemunhamos o que se passou. É impossível esquecer tudo aquilo. E mais
ainda, que seja lembrado do mesmo modo por todos nós.
CARA OU COROA
Brasil, 2012, 110 min, 12 anos
estreia 07 09 2012
gênero história / política
Distribuição Vinny Filmes
Direção Ugo Giorgetti
Com Walmor Chagas, Otávio Augusto, Thaia Perez,
Emilio de Mello, Julia Ianina, Geraldo Rodrigues
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO
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