“O exercício do poder” tem como protagonista um
ministro dos transportes do governo francês atual que, logo no início do filme,
visita a cena de um acidente de ônibus no qual várias crianças tinham morrido.
Como a televisão deverá entrevistá-lo, a assessora de imprensa tem o cuidado de
pedir ao prefeito local que lhe empreste a gravata, porque ela combina melhor
com o terno que estava usando. Essa referência à troca da gravata faz lembrar
“A tomada do poder por Luiz XIV” (1966) de Roberto Rossellini, no qual o rei
usava as vestimentas e moda como um instrumento de autoridade. Pode parecer o
cúmulo da hipocrisia, mas vemos que, de fato, o governante fica comovido com o
desastre e faz um pequeno discurso emocionado diante das câmaras. Ao terminar,
ele comenta com a assessora que não gostou de determinada frase do
pronunciamento. Aí, ficamos na dúvida: tudo aquilo não passava de uma encenação
eleitoreira, ou ele se importava de verdade com as pessoas? Em seguida, porém,
percebe-se que as duas opções estão igualmente corretas e, parecido com o poeta
de Fernando Pessoa, o político “chega a fingir que é dor a dor que deveras
sente”.
A passagem aponta para um procedimento que o diretor e roteirista Pierre
Schoeller retoma diversas vezes, porque sua meta é expor as ambiguidades do
Estado e de quem trabalha dentro dele e para ele. Não aborda direta ou
intensamente nenhuma dessas mazelas mais conhecidas do público sul americano,
como a corrupção, o abuso do poder ou a manipulação das informações. Premiado pelo
Cesar que é o equivalente frances do Oscar, o roteiro original se concentra na
esquizofrenia dos conflitos internos no seio dos gabinetes e dos partidos. E no
frenesi que leva à mudança constante de políticas e de cargos, para acompanhar
as oscilações da opinião pública – contrastando com a tendência à inércia de
uma máquina estatal alicerçada no tempo da monarquia absolutista.
Essa
contradição se manifesta no íntimo do protagonista, interpretado com maestria pelo
belga Oliver Gourmet, que fora premiado em Cannes por seu trabalho em “O Filho”
(2002), dos irmãos Dardenne – que, aliás, produziram “O exercício do poder”.
Ele se imagina como um tigre, sempre disposto a trucidar os inimigos sem
hesitação, mas num sonho, se identifica com um predador diferente: o crocodilo,
cujo único esforço é escancarar a boca para devorar a presa entregue
voluntariamente ao seu apetite. Ora felino, ora reptil, quando se descuida, o
personagem deixa que a humanidade se manifeste dentro de si e chora ao morrer
um humilde colaborador, vomita ao se lembrar dos mortos no acidente, se
embebeda junto com um motorista que mora num trailer e abraça o seu chefe de
gabinete como se fosse um amigo de infância.
É na relação entre essas duas
figuras que reside um dos aspectos mais interessantes da trama, enquanto
retrato cinematográfico da dinâmica estatal naquele país. Interpretado pelo
veterano Michel Blanc que ganhou o Cesar por esta atuação, esse burocrata encarna
a mecanicidade da estrutura política. Funcionário público de carreira, ele se
comporta como um “criado mudo”, tão frio e indiferente quanto um robô
programado para obedecer a qualquer comando sem discussão. Por outro lado, se
nutre da letargia do sistema e fica secretamente feliz quando uma novidade
qualquer é barrada pelos inúmeros obstáculos que as mudanças precisam enfrentar
naquele universo político. Essa dicotomia que separa os agentes governamentais
entre servidores públicos concursados e os ocupantes de cargos eletivos ou “de
confiança” também acontece entre nós.
Mas, o filme é instrutivo ao mostrar
certas diferenças entre os diversos esquemas de governo como, por exemplo, o
fato das autoridades francesas serem cercadas por mais pompa e cerimônia que as
nossas – desfrutando, porém, de mordomias mais modestas. É admirável essa
dramaturgia que Pierre Schoeller constrói ao revelar e contrapor as engrenagens
de dois mecanismos de diferentes naturezas, funcionando ao mesmo tempo e no
mesmo lugar, um influenciando o outro: a racionalidade da dinâmica e a lógica
da permanência. Em função da crise econômica, uma facção do governo quer privatizar
as estações de trem, contra a vontade do nosso personagem central, o ministro
dos transportes. Para ele a medida é impopular e contraria as promessas da
campanha eleitoral, mas começa a ser pressionado a mudar de ideia, o que o
obriga a optar entre o movimento do tigre e a postura do crocodilo.
O EXERCÍCIO DO PODER
L’exercice de L’etat
França - Bélgica / 112 min., 16 anos
estreia 10 08 2012
gênero drama / política
Direção
Pierre Schoeller
Com Michel Blanc e Oliver Gourmet
COTAÇÃO
* * * * *
EXCELENTE
2 comentários:
E é sempre bom pensar, contrariamente aos catastrofistas, que o cinema contemporâneo de qualidade não está morto.
Este é sensacional
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