Chega aos cinemas “Ninfomaníaca”, o novo escândalo,
desta vez mercadologicamente programado, de Lars von Trier (“Melancolia”). Uma mulher
que precisa ter cerca de 10 relações sexuais por dia, além de narrar, comenta a
sua própria história. Nesta primeira parte de um filme de 4 horas de duração,
apenas tomamos contato com o que aconteceu em sua infância e juventude –
período em que ela é interpretada pela inglesa iniciante Stacy Martin.
Já com
50 anos e vivida por Charlotte Gainsbourg (“Anticristo”), ela mesma vai
conduzindo a narrativa para o homem (Stelan Skarsgaard – “Thor”) que a encontrara
caída e espancada num beco. De uma conversa solta entre eles vão brotando todos
os comentários, geralmente eruditos, sobre a origem do seu hábito. Alguns
partem dos personagens – um assunto puxando outro, como a associação entre a
pesca e esse, digamos, hobby da
personagem. Mas o diretor adiciona vários outros temas, recorrendo inclusive a
diversos grafismos aparentemente didáticos acrescentados à imagem. Numa determinada
passagem, por exemplo, ele compara a multiplicidade de amantes da protagonista
à polifonia musical desenvolvida por Palestrina e Bach. Mais adiante, menciona
a sequencia numérica de Leonardo Fibonacci, o matemático italiano do século XII
que introduziu os algarismos arábicos na Europa.
Isso sem falar de citações de Edgar
Allan Pöe e tratados de botânica. A propósito, há uma flagrante insistência no universo
das árvores – talvez porque elas sejam seres vivos que se reproduzem sem precisar
fazer sexo. Tantas referências e citações explicam porque o próprio Lars Von
Trier, aliás, solicitou que nas fichas técnicas o gênero do filme fosse
designado como “digressionismo”. Por sua vez, a protagonista que se autodenomina
ninfomaníaca atribui o agravamento de suas tendências naturais a uma espécie de
“rebeldia contra o amor”, que ela professara junto com um grupo de amigas,
durante a adolescência. Bem observado pelo crítico Luis Zanin, essa longa troca
de ideias se assemelha a um processo de psicoterapia, em que o compassivo personagem
de Stelan Skarsgaard procura encontrar uma lógica por trás desse desvario
sexual.
Apesar de considerado “pornográfico”, as cenas de sexo são todas frias,
distanciadas e mecânicas, registradas sem erotismo e até com certa dose de
humor. A participação de Uma Thurman, inclusive, é tão engraçada que parece um
curta-metragem encaixado no roteiro. Não é possível, porém, avaliar plenamente a
obra, porque esta é uma versão com cortes. A completa só será distribuída no
segundo semestre, depois de Cannes e do Oscar. O pior é que um desses cortes
parece ter acontecido na parte final, deixando o filme com a desagradável
impressão de um trabalho inacabado. A mulher pede para ouvir um cassete com
música de Bach que se encontra no gravador de seu hospedeiro, mas ele avisa que
a cantata não coube inteiramente na fita e a música termina abruptamente. Seria
esse um aviso prévio, ou uma vacina contra os críticos? É como se ele estivesse
dizendo: “uma obra de arte, mesmo incompleta, não perde o seu valor estético”.
Aí seria uma atitude no mínimo pretensiosa, ou seja, Lars Von Trier colocando-se
no mesmo patamar de Johan Sebastian Bach.
NINFOMANÍACA – VOLUME 1
Nymphomaniac : Volume I
Dinamarca/Alemanha/França/Bélgica, 2013, 118 min, 18 anos
gênero: Digressionismo
estreia 10 01 2014
estreia 10 01 2014
Distribuição Califórnia Filmes
Direção: Lars von Trier
Com Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgård, Stacy Martin, Uma Thurman
Cotação
* * * *
ÓTIMO
2 comentários:
Às vezes não temos tempo mesmo para tudo que poderíamos fazer sem respeitar exatamente qualquer regra rígida, aquelas que cedo ou tarde serão como cobradores acumulados, pela manhã, à soleira da porta. Em tudo que li sobre o filme, Ninfomaníaca, criei uma expectativa, que o mais instigante é tentar decifrar uma continuação de outro, o Anti Cristo.
Toda idealização é um risco, sempre por conta do autor; talvez seja até uma mania.
Mas toda obra, seja artística ou documentária, um hai kai ou uma tese, sempre há uma porção de idealismo.
Eu gosto de jamais esquecer isso, porque se valorizamos intérpretes como filhos próprios, precisamos respeitar sua forma de compartilhar conosco; ignoram completamente o que lhes mandamos, descobrem a liberdade no que fazemos e lutam para alcançar o melhor de nossos ideais.
Obviamente não são mecânicos, o "melhor" sempre é a transformação do passado em novas expectativas.
Vou assistir, mas na hora tentarei deixar em mente apenas um tesão desmedido pela Uma Thurman.
Forte abraço!
Fiquei curioso. É Lars von Trier tentando se colocar no patamar de si próprio, o autointitulado maior cineasta vivo.
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