Na cerimônia de abertura, o prato principal foi
oferecido pela cineasta meio carioca meio brasiliense Betse de Paula – a figura
vitoriosa do último Festival de Pernambuco pela engenhosa comédia “Vendo ou
Alugo”, cuja qualidade não teve a merecida acolhida pelo público. Fora de
competição, ela mostrou o seu primeiro documentário que é “Revelando Sebastião Salgado” (foto acima),
sobre esse fotógrafo que é atualmente um dos mais celebrados do país. No
esforço de obter um resultado eficiente e elegante, para evitar também que o
projeto se confundisse com uma hagiografia, porém, ela teve que fazer milagre,
porque o Salgado parecia querer dirigir o filme. Determinava o trajeto da
câmara, abria arquivos e gavetas catalogadas com precisão virginiana e apontava
as imagens que deveriam ser registradas. Tudo bem, se tivesse sobrado algum
espaço para a discussão ou o questionamento de seu discurso, sempre firme e
seguro, tendendo, aliás, para o monolítico.
A mostra competitiva do festival começou à sombra
de um acidente que veio roubar um pouco da euforia formada em torno da
reinauguração do emblemático Cine Brasília, há vários anos fechado para
reformas só agora concluídas. Um problema técnico, supostamente provocado pelo
excesso de informação contida no HD da projeção digital, determinou que, quase
meia hora antes de seu encerramento, a exibição do longa-metragem de ficção
“Pobres Diabos” (foto acima) fosse suspensa. Tomada de surpresa, a organização só comunicou
no dia seguinte para quando seria marcada uma nova exibição da obra – o que foi
complicado, uma vez que a agenda das mostras competitivas se achava bastante
apertada. Eram ao todo 30 obras concorrentes, ou seja, seis documentários de
longa-metragem e mais seis de curta-metragem; seis longas-metragens de ficção e
mais seis curtas; além de seis curtas metragens de animação – num total de 5
filmes por sessão, que começava às 7 da noite e geralmente se estendia para
além da meia noite.
Mesmo assim, o filme do cearense Rosenberg Cariri seria
eleito o melhor do certame, de acordo com o júri popular. A tragicômica jornada
pelo sertão nordestino de um circo pra lá de mambembe, com a encenação da
tradicional batalha entre Lampião e Lúcifer, acompanhada pela disputa (foto acima) entre o
palhaço (Chico Diaz) e o gerente (Gero Camilo) pelo coração e demais prendas da
cantora (Silvia Buarque). O diretor do filme interrompido é o veterano
Rosemberg Cariri, o mais conhecido do Ceará, autor de 12 longas de ficção,
entre eles, “Corisco e Dadá”. Este trabalho com que ele concorria em Brasília é
um dos mais bem resolvidos de sua carreira, desenhado num tom a um só tempo
poético e realista, um pouco à maneira de Chaplin e Pasolini, mas muito
brasileiro na construção dos tipos. Um grupo de esfarrapados reunidos num circo
paupérrimo que, de certa forma, faz coro com as dificuldades financeiras e técnicas
que insistem em assombrar o áudio visual do país.
Ao longo da exibição dos filmes concorrentes, a
constatação de que os documentários se colocavam acima das obras de ficção, em
termos de qualidade cinematográfica, foi se consolidando. Logo na segunda noite
da competição, os filmes de ficção apresentados se mostraram decepcionantes. Tanto
o curta cearense “Lição de Esqui” quanto o longa baiano “Depois da Chuva” (foto acima) abordaram a juventude, mas tropeçaram num problema tão velho que parece ter se
tornado crônico, ou seja, a ausência de um roteiro consistente capaz de
orientar o projeto e lhe dar sentido. É triste ver realizadores que associam inexperiência
à falta de humildade diante dos temas abordados, às vezes complexos demais,
como aconteceu no caso do longa, que tentou elaborar o retrato emocional de um
jovem de Salvador, na época da frustrada eleição de Tancredo Neves. Faltou
fundamentação social, política e psicológica para garantir o interesse nessa
história de rebeldia estudantil. O filme vale, porém, pela trilha sonora e pela
atuação de Pedro Maia, que terminaria por ser premiado como o melhor ator.
Um sopro de criação e originalidade veio com o
curta documentário “O Canto da Lona” (foto acima) do paulista Thiago Mendonça que, em 2012,
vencera o Festival de Brasília com a “Guerra dos gibis”. Desta vez ele focaliza
o mundo do circo por meio de uma estratégia encantadora que é a de reconstituir
momentos musicais clássicos dos picadeiros. Enquanto relembra o agitado período
anterior à sua aposentadoria, um pequeno grupo de veteranos orienta jovens
intérpretes na remontagem de antigos números. A surpresa mais benvinda aconteceu
com “O Mestre e o Divino”, de Tiago Campos, que seria escolhido como o melhor
documentário pelo júri oficial. Ele traz dois personagens riquíssimos, descobertos
no ambiente das comunidades indígenas fundadas por missionários salesianos: um
velho padre e seu discípulo de catecismo, ambos apaixonados por cinema,
documentaristas instintivos e amadores, para quem a falta de recursos e de
formação técnica é compensada por um enorme talento. Na verdade essa é a grande
missão dos festivais: revelar joias raras como estas. Como já tínhamos
percebido, o gênero documentário salvou o Festival, com
concorrentes de longa-metragem tão bons que o Juri deve ter tido dificuldade
para escolher o melhor. Venceu “O Mestre e o Divino”, o mais divertido e
cinematográfico de todos.
Com
produção do projeto Vídeo nas Aldeias, que estimula os próprios indígenas a
registrarem a sua realidade em mídias audiovisuais, o filme focaliza um
instigante conflito entre dois cineastas voltados para o mesmo assunto, isto é,
a cultura xavante – tal como ela se manifesta na missão
salesiana de Sangradouro, no Mato Grosso. O Divino do titulo é um jovem nativo (foto acima) que não apenas se dedica a esse objetivo, mas também procura ensinar os
rudimentos de captação e edição aos companheiros de tribo. O curioso é o
relacionamento tão filial quanto competitivo dele com o mestre Adalbert Heide,
um velho missionário salesiano alemão que desde os anos de 1970 coleciona um
precioso acervo com centenas vídeos sobre os xavantes – todos minuciosamente
catalogados, exatamente como faz Sebastião Salgado com suas fotos.
Só que “O
Mestre e o Divino” revela as inúteis tentativas do velho missionário (foto acima) em
comandar a filmagem. Essa birra entre eles, o cineasta índio e seu professor,
corresponde ao inevitável conflito de gerações e, ao mesmo tempo, a um
confronto entre dois estilos de fazer cinema, porque as obras do velho
religioso são quase todas encenadas. Nelas, os guerreiros se mostram
convenientemente vestindo folgados calções e os nomes dos rituais aparecem
traduzidos para o português, de um modo adequado à doutrina cristã. Ou seja, o
que era para ser apenas um registro rotineiro, foi transformado num
documentário denso, com múltiplos e diversos significados, graças à
inteligência de um jovem antropólogo mineiro, formado em Brasília e radicado em
Pernambuco. Vamos guardar o nome dele e do filme: Tiago Campos, autor de “O
Mestre e o Divino”.
FOTOS JUNIOR ARAGÃO
É difícil explicar a percepção que, neste ano em Brasília, a qualidade do conjunto de documentários superou a dos filmes de ficção. De um lado, isso reflete o conjunto das centenas de obras que foram inscritas para a competição, mas, pode também indicar uma tendência da produção brasileira como um todo. O ascendente cinema pernambucano se fez presente com “Amor, plástico e barulho”, de Renata Pinheiro, uma documentarista premiada por seus curtas “Super Barroco” e “Praça Walt Disney”. Em sua estreia na ficção, ela focaliza o mundo da chamada música brega do Recife, em que duas garotas do interior (foto acima) tentam sobreviver como cantoras no ambiente das casas noturnas de baixo nível. Suas magnéticas intérpretes levaram os prêmios de melhor atriz (Maeve Jenkins) e atriz coadjuvante (Nash Laila). Maeve é a figura da direita...
O universo em que elas se
movem é bem reconstituído, mas a trama é pequena e desperta pouco interesse.
Faltou um enredo de mais envolvimento narrativo, do mesmo modo como em “Rio
Corrente” do paulista Paulo Sacramento, outro documentarista consagrado pelo
célebre “O Prisioneiro da Grade de Ferro” que, ainda assim, contando apenas com
um mero triângulo amoroso, concorreu com o trabalho de ficção mais sólido
dentre os demais. Do mesmo mal, ou seja, de uma dramaturgia esgarçada e
rarefeita, padece “Avanti Popolo”, filme paulista de Michael Wahrman num longa
de estreia, em que os atores se salientam mais que a história: são eles, o
professor Andre Gatti e o saudoso cineasta Carlos Reichenbach (foto acima), em sua
derradeira aparição na tela.
FOTOS JUNIOR ARAGÃO
Já o júri oficial elegeu melhor filme justamente o
mais distante de uma possível aproximação do público. “Exilados do Vulcão” (foto acima) de
Paula Gaitan, viúva de Glauber Rocha, é uma produção de 125 minutos, muito bem
fotografada em suas locações de Cataguases no interior de Minas, mas sem
qualquer diálogo. É como se fosse um filme mudo, só que sem letreiros. Nem é
possível dizer se a historia tem algum interesse, por que é bem difícil descobrir
qual seja ela. Já os curtas de ficção eram todos sofríveis e o escolhido foi justamente
um dos piores, feito por dois estudantes de cinema, como um trabalho escolar. O
mesmo acontece com os de animação, em que o premiado foi “Faroeste”, um dos
mais confusos e tecnicamente primários da competição.
“A
Arte do Renascimento – uma cinebiografia de Silvio Tendler” compensa certa
carência de recursos com o entusiasmo por parte de direção de Noilton Nunes,
com a importância dos filmes focalizados e com a simpatia temperada pelo bom
humor do próprio personagem central – Silvio Tendler uma das figuras mais
respeitadas do ambiente cinematográfico. Já “Hereros Angola” (foto acima) do fotógrafo e
publicitário pernambucano Sergio Guerra se mostra extremamente bem produzido,
com uma fotografia requintada e uma pesquisa que parece ter sido profunda e
intensa. Focaliza uma etnia nômade angolana até então desconhecida por aqui,
repleta de aspectos curiosos e até desconcertantes. Como é o caso de seus
hábitos sexuais peculiares e o fato do banho não fazer parte de seus costumes
cotidianos, sem falar de uma estética bem singular, que inclui determinadas
mutilações corporais. O problema é a escolha de um formato clássico e
relativamente costumeiro para a abordagem do tema, que lembra o
convencionalismo editorial dos canais estrangeiros de TV a cabo, como o
Discovery e o National Geographic.
Por sua vez “Morro dos Prazeres”, da brasilense
formada na Holanda Maria Augusta Ramos – consagrada por “Juízo” (2007), analisa
com ritmo e grande competência a intervenção das Unidades Policiais
Pacificadoras numa das principais favelas do Rio de Janeiro. Do
ponto de vista da investigação, o filme mais impressionante foi “Outro Sertão”
sobre a atuação humanitária de Guimarães Rosa (foto acima), entre 1938 e 1949, quando o
escritor foi vice-cônsul do Brasil em Hamburgo, durante o nazismo. As
pesquisadoras Adriana Jacobsen e Soraia Vilela descobriram documentos inéditos
que informam sobre diversos judeus que fugiram para o Brasil por meio de
Guimarães Rosa e um programa de TV em que ele é entrevistado – registro único
nesse gênero. Reiterando a impressão inicial, todos os documentários
participantes do 46º Festival de Brasília se revelaram interessantes, cada um a
seu modo, o que representa uma excelente contribuição para o crescimento desse
gênero.
Na foto abaixo eu estou ao microfone, num dos debates do festival, enquanto na extrema direita da imagem, vemos o crítico Luiz Zanin provavelmente se perguntando: "como é que esse cara vem ao debate de shorts e camiseta regata!?!"
FOTOS JUNIOR ARAGÃO
Um comentário:
Nossa, se o cinema brasileiro é este panorama eu estou cada vez mais distante dele.
E para azar meu os blockbusters dominaram todas as salas de cinema de quem vive longe demais das capitais.
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