Pelo corpo de “Flores
Raras” passam questões levantadas há meio século e que continuam em discussão
até hoje, na sociedade e no próprio cinema. No plano do social, prossegue em
conflitado debate o tema das conexões entre política, mercado e cultura. Na estética
cinematográfica, complica-se o problema do tratamento dramático dos
acontecimentos históricos. Com direção de Bruno Barreto, o filme se baseia numa
biografia da poeta americana Elizabeth Bishop, uma das mais importantes de toda
a literatura em inglês. Ela que viveu por quase duas décadas no Brasil, entre o
último governo de Getulio Vargas e o começo dos anos de 1970 e foi companheira
de Lota Macedo Soares, a paisagista que, durante o governo de Carlos Lacerda, concebeu,
criou e formou o Parque do Flamengo.
Esta figura tão incomum na história
brasileira, misto de socialite, mecenas e empreendedora, é interpretada com a
costumeira segurança e competência por Glória Pires, enquanto o papel de
Elizabeth fica para a australiana que fez a princesa guerreira Eowyn na série
“O Senhor dos anéis” – Miranda Otto, num trabalho merecedor dos prêmios mais
disputados, principalmente por ter evitado todos os possíveis truques e atalhos
que poderiam conduzir a uma caricatura da personagem que, na realidade apresentava
diversas facetas: uma americana, órfã, pobre, poeta talentosíssima que vivia de
bolsas e prêmios literários, de saúde abalada por ser alérgica a quase tudo,
alcoólatra, lésbica e linda.
A representação de Miranda, no entanto,
impressiona pela riqueza de recursos expressivos que utiliza, sempre
discretamente, em baixa definição e enfatizando os contrastes, como por
exemplo, entre recato e sensualidade, ou timidez e franqueza. Note-se como ela
vai mudando de voz ao longo filme, à medida que o uísque começa a mexer com
suas cordas vocais.
Celebrizado por sua
direção em “Dona Flor e seus Dois Maridos” (1976), Bruno Barreto é o campeão
histórico de bilheteria no Brasil e talvez agora tenha a oportunidade de dar à
luz uma mulher tão marcante e viva quanto Sonia Braga esteve na pele de Dona
Flor. Melhor dizendo, quem sabe ele possa realizar o que imaginara para a
cantora Leniza, mas que Betty Faria, apesar de ter atuado ali na contracena de
Odete Lara, não atingiu plenamente em “A Estrela Sobe” (1974): uma figura
vitoriosa de mulher que vence não apesar de suas fragilidades, mas por causa
delas.
Tal como uma dessas “Flores Raras” do título, isto é, as personagens
centrais – no bojo do filme e no momento histórico que ele nos recorta: duas
pessoas diametralmente diferentes e que, no entanto, só se realizaram em
resultado do que uma fez pela outra. Mais ou menos como seria num jogo de
Isolda sobrevivendo a Tristão, e vice-versa. Eis aí uma dificuldade do “cinema
histórico” que Barreto enfrentou bravamente: na vida real, os relacionamentos
não se mostram assim tão lógicos, mas na ficção é preciso aquele mínimo de
coerência para atribuir sentido à narrativa e evitar que os espectadores se
aborreçam. Ou seja, quanto mais complexo, original, diferenciado (e ainda
assim, plausível e emocionante) seja o relacionamento dos amantes
protagonistas, mais próximo ele estará da chamada “vida real”. Então,
vejamos...
Bishop escrevia relativamente
pouco, em termos de quantidade, e também não tinha uma legião de leitores, mas recebeu
alguns dos prêmios internacionalmente mais significativos em sua época. Na
qualidade de paisagista, por sua vez, Lota não foi reconhecida como alguns de
seus colegas brasileiros, inclusive porque sua atividade nunca alcançou o
prestígio da arquitetura e sempre foi confundida com arte decorativa, ou mera
jardinagem. Sua obra, porém, transformou a fisionomia e, talvez a própria sensibilidade
do povo carioca. O cronista Humberto Werneck cita um famoso escritor argentino
que esteve no Rio de Janeiro em 1930 e afirmou que, apesar das praias, a cidade
lhe parecia triste porque não tinha flores. “Dois milhões de
habitantes e nenhum jardim, nenhuma flor!” – reclamava Roberto Arlt. Duas
décadas depois disso, ainda faltava no Rio de Janeiro, um lugar como o Central
Park de Nova York ou o parque Ibirapuera de São Paulo, ou seja, uma paisagem construída
com plantas e flores, mas em escala monumental.
Aquela foi a obra de uma vida e
que até hoje não teve a distinção que merece. Instalado no aterro do Flamengo – que, aliás, é o maior do mundo – sua implantação foi contemporânea de Brasília
e serviu de experimento para o modernismo nacional, contando com a colaboração
de diversos artistas, como Roberto Burle Marx e Afonso Reidy. Outra questão
colocada por Barreto, portanto, é o fato da cultura do país ser pautada por
nosso esquálido mercado artístico, sem o necessário respaldo por parte da
sociedade. Quando durante a ditadura, Lota pretendeu transformar a estrutura
gestora do Parque do Flamengo em fundação, nos moldes das organizações sociais
de hoje, foi demitida pelo governo militar.
Egressa do “primeiro
mundo”, Elizabeth era, por outro lado, uma escritora de status proporcionalmente
bem maior que o volume de sua produção. Ela chegou a dizer que não estava interessada
num trabalho em larga escala, por não acreditar que algo precisasse ser grande
para ser bom. Às vezes, ela demorava anos para terminar um poema. Curiosamente,
coisa equivalente acontecia com Lota e seu Parque do Flamengo que é gigantesco
e, no entanto, singular – dotado de uma impressionante unidade de estilo. Nesse
sentido, ambas eram criadoras quase minimalistas, absolutamente distintas, mas
igualmente dedicadas a um único trabalho.
Atravessaram juntas as décadas de 1950
e 1960 e, portanto, viram nascer a bossa nova e viveram o Rio de Janeiro em seu
momento mais esfuziante, circulando por lugares mágicos como Petrópolis e Ouro
Preto. Duas mentalidades conflitantes, em trajetórias quase opostas e que, no
entanto, se complementaram no campo da criação artística. Elizabeth não teria
escrito os seus premiados livros sem o apoio afetivo e financeiro de Lota. E
esta não obteria o estímulo que lhe deu Elizabeth, às vezes sob a forma de
desafio, para concluir aquele imenso jardim do qual cuidava como se fosse um
filho.
“Flores Raras” promove uma
celebração à beleza, ao abrir espaço para a origem dessa obra de arte monumental
que é o parque do Flamengo e para a feitura de pequenas filigranas verbais,
como este poema que Bishop compôs sobre o xampu com que lavava cabelo da amada:
“Em formação brilhante, para onde migram as estrelas cadentes em seu cabelo
preto?” Além de simplesmente contar uma história, Barreto elabora signos cinematográficos
de forte impacto, como a luz da lua capturada pelas altíssimas luminárias do
Flamengo e o tanque de modelismo naval que povo da cidade transformou em
campinho de futebol. Quem teve contato com essa mesma historia narrada no livro
de Carmem Oliveira ou no teatro, num inesquecível monólogo de Regina Braga com
direção de José Possi Neto, poderá ver o mesmo drama se transfigurando nessas
diferentes linguagens. E perceber o talento de Bruno Barreto, que continua
florescendo neste seu 19º filme.
Um comentário:
Fantastic!
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