Houve
época em que os filmes brasileiros se dividiam em duas categorias: urbanos e
rurais. De modo geral, aqueles ambientados no campo concentravam-se nas questões
sociais, enquanto os situados em cidades privilegiavam os temas de cunho
psicológico ou existencial. Em seus primeiros anos, inclusive, a maioria dos
projetos do cinema-novo focalizava o interior do país. Essa fronteira,
entretanto, vem sendo retomada pelo cinema pernambucano em obras que demonstram
a intenção de questioná-la. É o que vimos claramente, por exemplo, em “Árido
Movie” (Lírio Ferreira - 2005) e “Viajo porque preciso e volto porque te amo” (Karim
Aïnouz e Marcelo Gomes – 2009). E veremos em “Boa Sorte, meu Amor” (Daniel
Aragão – 2012) e em “Eles Voltam” (Marcelo Lordello – 2012). Propositalmente ou
não, cineastas como estes parecem apontar para o fato de que, concretamente, na
história do nordeste e do país com um todo, litoral e sertão representam duas
faces da mesma moeda – inseparáveis em qualquer tentativa artística ou
científica de compreender a nossa realidade.
Em
“O Som ao Redor”, o crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho explicita e
aprofunda essa problemática por meio de uma metodologia cinematográfica que
impressiona pela coesão e eficiência. O filme estreia no mercado nacional após
arrebanhar prêmios importantes nos festivais de Copenhagen, Oslo, Rotterdam, Gramado,
São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro – além de ser incluído numa lista de
melhores de 2012 publicada pelo New York Times. A essas credenciais se soma uma
inédita unanimidade entre os críticos e cinéfilos que já o assistiram por aqui.
É inovador, sem afastar aqueles acostumados com o cinema tradicional. Reúne
várias narrativas diferenciadas, mas não perde a coerência dramática, ao manter
uma firme unidade de espaço, de tempo e de movimentação – o que favorece o
adensamento crescente das expectativas, ou seja, daquilo que se costuma chamar
de suspense.
Tudo
acontece numa rua do bairro de Boa Viagem em Recife, à beira da praia, aonde os
condomínios de alta concentração habitacional e falso luxo vêm tomando o lugar
das antigas casas da classe média. Sem desviar o olhar desse processo de
desfiguração urbana, o enredo se direciona para as pessoas que ali vivem e
trabalham. Depois de uma longa introdução montada a partir de fotos de época,
em branco e preto, tomadas num engenho há no mínimo cinco décadas, a câmara
mergulha no cotidiano atual do lugar, mostrando-o como se fosse um documentário.
A partir daí, os instrumentos musicais da trilha se calam e nossa audição é
ocupada por ruídos do ambiente – arranjados e trabalhados no sentido de obter uma
forma de música teoricamente impossível, por se mostrar ao mesmo tempo mecânica
e espontânea.
Como
acorde inicial, o guincho de uma serra elétrica corta metal numa construção,
enquanto a imagem passa para uma rua deserta, como num western de John Ford. A
trilha sonora, porém, fica com a caótica zoada de vozes infantis captada de um play-ground de prédio. Ao longe, um
bate-estaca ecoa feito um surdo de escola de samba. De repente, dois automóveis
se cruzam na esquina e o rangido da brecada antecipa o estrondo de uma batida. Essa
sequencia introdutória e pretensamente documental vale como ouverture para a primeira parte da
história, intitulada “Cães de Guarda”. Ela nos diz que as coisas acontecem num
mundo em que crianças bem alimentadas vivem felizes, ainda que presas num pátio
de edifício. A alegre algazarra infantil atravessa as grades, mas a garotada
não pode sair para brincar na rua, que se acha tristemente vazia, por não ser um
lugar seguro, mas cenário de acidentes que podem acontecer a qualquer momento.
Esse
procedimento, aliás, remete ao até então enigmático título do filme e vai se
consolidando a cada cena, como linha dominante – tanto para designar a proposta
ficcional do roteiro quanto para compor o estilo identificador da obra. Ou
seja, ao redor do quê esse som do título se manifesta? A sua versão inglesa é Neighbouring Sounds, o que também pode
significar os sons dos outros, isto é, do perigo. A verdadeira tonalidade de “O
Som ao Redor” se define com o arrepio provocado pela chave de um vigia de
carros riscando a pintura do Audi cujo dono lhe pagara para proteger. Eis aí um
ideograma – no sentido que Eisenstein atribuía ao estratagema de associar duas
figuras para produzir uma ideia – tal como “braços cruzados + máquinas paradas
= greve”. Vale como uma imagem sonora e visual do filme como um todo. Os
jurados do festival dinamarquês New
Talent Grand Pix sublinham o “tratamento quase arquitetônico do som com o
qual Mendonça Filho constrói esse mundo claustrofóbico que é ao mesmo tempo
local e universal... Infelizmente.”
Na
edição de som, os ruídos aparecem em sua materialidade e não se resumem a
acompanhar as falas e os gestos: são enfatizados, estilizados e ganham “vida
própria”, funcionando até como as vozes dos objetos. Esse é o caso da máquina
de lavar e do aspirador, com os quais uma das personagens costuma se relacionar
fisicamente. Por sua vez, os diálogos adquirem baixa definição. As pessoas quase
sempre falam baixo, sem impostação e nem brilho, num registro próximo ao hiper-realismo,
mas muitas vezes com aquela comicidade sutil dos filmes de Jacques Tati. Isso,
entretanto, não se aplica aos personagens a cargo dos atores mais experientes e
expressivos do elenco: Irandhir Santos (“A Febre do Rato”) e W. J. Solha (“Era
uma vez eu, Verônica”).
De
altíssima definição, o discurso deles reproduz a aspereza do relacionamento arquetípico
entre um coronel e seu jagunço. A partir desse antagonismo, o filme se desloca
no tempo e no espaço, abrindo uma fenda na matéria histórica para trabalhar com
elementos míticos da cultura brasileira. Solha faz o papel do proprietário da
maior parte dos imóveis da rua, enquanto Irandhir interpreta o chefe de uma
firma de segurança que chega para tomar conta do lugar. Por meio dessas figuras
tão comuns nas cidades modernas, até a derradeira cena do filme o bairro
praiano de Boa Viagem terá se transformado na sucursal de um antigo engenho
sertanejo.
O SOM AO REDOR
Brasil, 2012, 131 min, 16 anos
estreia 04 01 2013
Distribuição Vitrine Filmes
gênero drama /social/ suspense
Direção: Kleber Mendonça Filho
Com W. J. Solha, Irandhir Santos, Sebastião Formiga,
Gustavo Jahn.
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO
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