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domingo, 6 de janeiro de 2013

2013 se inicia com um grande filme brasileiro: “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho


Houve época em que os filmes brasileiros se dividiam em duas categorias: urbanos e rurais. De modo geral, aqueles ambientados no campo concentravam-se nas questões sociais, enquanto os situados em cidades privilegiavam os temas de cunho psicológico ou existencial. Em seus primeiros anos, inclusive, a maioria dos projetos do cinema-novo focalizava o interior do país. Essa fronteira, entretanto, vem sendo retomada pelo cinema pernambucano em obras que demonstram a intenção de questioná-la. É o que vimos claramente, por exemplo, em “Árido Movie” (Lírio Ferreira - 2005) e “Viajo porque preciso e volto porque te amo” (Karim Aïnouz e Marcelo Gomes – 2009). E veremos em “Boa Sorte, meu Amor” (Daniel Aragão – 2012) e em “Eles Voltam” (Marcelo Lordello – 2012). Propositalmente ou não, cineastas como estes parecem apontar para o fato de que, concretamente, na história do nordeste e do país com um todo, litoral e sertão representam duas faces da mesma moeda – inseparáveis em qualquer tentativa artística ou científica de compreender a nossa realidade.
Em “O Som ao Redor”, o crítico e cineasta Kleber Mendonça Filho explicita e aprofunda essa problemática por meio de uma metodologia cinematográfica que impressiona pela coesão e eficiência. O filme estreia no mercado nacional após arrebanhar prêmios importantes nos festivais de Copenhagen, Oslo, Rotterdam, Gramado, São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro – além de ser incluído numa lista de melhores de 2012 publicada pelo New York Times. A essas credenciais se soma uma inédita unanimidade entre os críticos e cinéfilos que já o assistiram por aqui. É inovador, sem afastar aqueles acostumados com o cinema tradicional. Reúne várias narrativas diferenciadas, mas não perde a coerência dramática, ao manter uma firme unidade de espaço, de tempo e de movimentação – o que favorece o adensamento crescente das expectativas, ou seja, daquilo que se costuma chamar de suspense.
Tudo acontece numa rua do bairro de Boa Viagem em Recife, à beira da praia, aonde os condomínios de alta concentração habitacional e falso luxo vêm tomando o lugar das antigas casas da classe média. Sem desviar o olhar desse processo de desfiguração urbana, o enredo se direciona para as pessoas que ali vivem e trabalham. Depois de uma longa introdução montada a partir de fotos de época, em branco e preto, tomadas num engenho há no mínimo cinco décadas, a câmara mergulha no cotidiano atual do lugar, mostrando-o como se fosse um documentário. A partir daí, os instrumentos musicais da trilha se calam e nossa audição é ocupada por ruídos do ambiente – arranjados e trabalhados no sentido de obter uma forma de música teoricamente impossível, por se mostrar ao mesmo tempo mecânica e espontânea.
Como acorde inicial, o guincho de uma serra elétrica corta metal numa construção, enquanto a imagem passa para uma rua deserta, como num western de John Ford. A trilha sonora, porém, fica com a caótica zoada de vozes infantis captada de um play-ground de prédio. Ao longe, um bate-estaca ecoa feito um surdo de escola de samba. De repente, dois automóveis se cruzam na esquina e o rangido da brecada antecipa o estrondo de uma batida. Essa sequencia introdutória e pretensamente documental vale como ouverture para a primeira parte da história, intitulada “Cães de Guarda”. Ela nos diz que as coisas acontecem num mundo em que crianças bem alimentadas vivem felizes, ainda que presas num pátio de edifício. A alegre algazarra infantil atravessa as grades, mas a garotada não pode sair para brincar na rua, que se acha tristemente vazia, por não ser um lugar seguro, mas cenário de acidentes que podem acontecer a qualquer momento.
Esse procedimento, aliás, remete ao até então enigmático título do filme e vai se consolidando a cada cena, como linha dominante – tanto para designar a proposta ficcional do roteiro quanto para compor o estilo identificador da obra. Ou seja, ao redor do quê esse som do título se manifesta? A sua versão inglesa é Neighbouring Sounds, o que também pode significar os sons dos outros, isto é, do perigo. A verdadeira tonalidade de “O Som ao Redor” se define com o arrepio provocado pela chave de um vigia de carros riscando a pintura do Audi cujo dono lhe pagara para proteger. Eis aí um ideograma – no sentido que Eisenstein atribuía ao estratagema de associar duas figuras para produzir uma ideia – tal como “braços cruzados + máquinas paradas = greve”. Vale como uma imagem sonora e visual do filme como um todo. Os jurados do festival dinamarquês New Talent Grand Pix sublinham o “tratamento quase arquitetônico do som com o qual Mendonça Filho constrói esse mundo claustrofóbico que é ao mesmo tempo local e universal... Infelizmente.”
Na edição de som, os ruídos aparecem em sua materialidade e não se resumem a acompanhar as falas e os gestos: são enfatizados, estilizados e ganham “vida própria”, funcionando até como as vozes dos objetos. Esse é o caso da máquina de lavar e do aspirador, com os quais uma das personagens costuma se relacionar fisicamente. Por sua vez, os diálogos adquirem baixa definição. As pessoas quase sempre falam baixo, sem impostação e nem brilho, num registro próximo ao hiper-realismo, mas muitas vezes com aquela comicidade sutil dos filmes de Jacques Tati. Isso, entretanto, não se aplica aos personagens a cargo dos atores mais experientes e expressivos do elenco: Irandhir Santos (“A Febre do Rato”) e W. J. Solha (“Era uma vez eu, Verônica”).
De altíssima definição, o discurso deles reproduz a aspereza do relacionamento arquetípico entre um coronel e seu jagunço. A partir desse antagonismo, o filme se desloca no tempo e no espaço, abrindo uma fenda na matéria histórica para trabalhar com elementos míticos da cultura brasileira. Solha faz o papel do proprietário da maior parte dos imóveis da rua, enquanto Irandhir interpreta o chefe de uma firma de segurança que chega para tomar conta do lugar. Por meio dessas figuras tão comuns nas cidades modernas, até a derradeira cena do filme o bairro praiano de Boa Viagem terá se transformado na sucursal de um antigo engenho sertanejo. 
O SOM AO REDOR 
Brasil, 2012, 131 min, 16 anos
estreia 04 01 2013
Distribuição Vitrine Filmes
gênero drama /social/ suspense

Direção: Kleber Mendonça Filho
Com W. J. Solha, Irandhir Santos, Sebastião Formiga, Gustavo Jahn.
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO

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