À cata de algum defeito em “Batman: o cavaleiro das
trevas ressurge”, um crítico de mau humor poderia mencionar a peça de Debussy
(“En Bateau”) que toca enquanto Bruce Wayne (Christian Bale) dança com Selina
(Anne Hathaway) num baile beneficente. De fato, não se trata de uma música para
dançar e, na realidade, jamais seria programada por quem tivesse organizado uma
festa daquele tipo. No decorrer das duas horas e quarenta e cinco minutos do
filme, porém, o mal intencionado comentarista seria obrigado a reconhecer que
nem mesmo aquela passagem mereceria ser carimbada como um deslize do diretor
Christopher Nolan. Na última imagem, especialmente, ficaria claro que a escolha
daquela melodia talvez tivesse a intenção sugerir um barquinho à deriva num
idílico lago da belle époque,
abrigando um casal de namorados: um som que talvez existisse apenas na mente
dos personagens, ajudando-os a fugir por alguns instantes do frenesi de
violência que a sombria Gotham atravessava. A sofisticação quase poética desse
procedimento de montagem seria certamente improvável numa aventura comum de
super-heróis – classificação que não cabe neste caso.
Com a surpresa da cena de abertura, em que um avião
aborda outro em pleno vôo, como se fosse um navio pirata, percebe-se logo que
estamos embarcando numa narrativa destinada a nos arrancar do mundo cotidiano,
prosaico e concreto em que vivemos – ainda que guarde com ele as relações
necessárias para o entendimento da história. Nesse aspecto, se enfatiza a
ligação com as histórias em quadrinhos, porque cada plano precisou ser
previamente desenhado para que a mirabolante sequencia fizesse sentido. Poesia,
comics, aventura, drama, humor...
Este novo exemplar de Batman segundo Nolan tem conexões com quase todos os
gêneros. Poderia até ser considerado um “filme total”, parafraseando Marcel
Mauss em seu conceito de “fato social total”, ou seja, aquele que possui implicação simultânea em vários
níveis da sociedade.
Inesperadamente, uma ponte se estabelece com o drama
político, porque desta vez o vilão não é uma figura caricata e maluca, como o
Coringa ou o Pinguim, mas um terrorista de carne e osso que pretende tomar o
poder, recorrendo a uma linguagem populista para conquistar adeptos. A ele se
associam pessoas insatisfeitas com a desigualdade social e com as leis de
exceção que vigoram em Gotham desde o filme anterior, “Batman, o cavaleiro das
trevas” (2008), do mesmo diretor. Com a criminalidade
reduzida a quase zero, Batman se acha aposentado e Bruce Wayne, praticamente
aleijado, só anda de bengala, sempre recluso em sua mansão, como uma espécie de
Howard Hughes.
Mas tudo se altera pela ação de Bane (Tom Hardy, de “A Origem”)
que não apenas domina a cidade, mas se apossa do segredo em relação à
identidade secreta do herói e consegue prendê-lo numa prisão inexpugnável.
Neste ponto tudo estará perdido para ele – inclusive o corpo, inutilizado por
uma fratura na coluna vertebral. É aí que se destaca a dimensão política do
roteiro. Sob a liderança do comissário Gordon (Gary Oldman) os cidadãos comuns
organizam a resistência, que leva ao desfecho em que acontece uma batalha
campal, à maneira dos espetáculos épicos ambientados na Antiguidade ou da Idade
Média. Isto é, o coletivo entra em cena para sustentar os esforços individuais
dos bem intencionados.
Apoiando o
preciosismo do roteiro, que cuida de cada personagem secundário como se fosse o
principal, todos os intérpretes se mostram impecáveis. Especialmente Michael
Caine, como o mordomo Alfred, pai adotivo do protagonista, Morgan Freeman, como
o seu braço executivo e Anne Hattaway, no papel de Mulher Gato. De modo
brilhante, ela garante a ambiguidade e o charme da figura feminina que
simultaneamente atrai e repele o homem morcego, encarregando-se também do humor
indispensável ao equilíbrio desse conjunto tão heterogêneo.
BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS RESSURGE
The Dark Knight Rises
Reino Unido/EUA, 2012, 165 min, 12 anos
estreia 27 07 2012
gênero aventura / quadrinhos
Distribuição Warner
Direção Christopher Nolan
Com Christian Bale, Anne Hathaway, Tom Hardy,
Michael Caine, Marion Cotillard, Gary Oldman
COTAÇÃO
* * * *
ÓTIMO
COTAÇÃO
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ÓTIMO
Um comentário:
Sem discutir o mérito do filme, o que mais me chama a atenção é a impressão de que Nolan vai mandar muito neste gênero de produção daqui para a frente. Parece que o homem é a bola da vez, o von Trier do cinema mainstream.
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