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sábado, 28 de agosto de 2010

Post Scriptum sobre o comentário a respeito de "Destinos Ligados", postado em 17 de agosto

Me perguntaram porque considero Rodrigo Garcia um bom diretor. Principalmente porque estebelece uma mise en scène em que se produzem significados, além daquilo que se acha escrito no roteiro. Evita longas e reiterativas conversas para explicar o que acontece, ao deixar que os gestos e olhares forneçam as informações visuais necessárias ao entendimento das cenas. Às vezes um único olhar por parte do intérprete consegue dizer tudo sobre o personagem. A primeira sequencia, por exemplo, já é notável pela concisão narrativa. Num primeiro quadro um casal de adolescentes se beija. Corta para a moça já grávida. Logo na terceira tomada, ela dá á luz uma criança. Em todas as etapas, sem recorrer a diálogos, a direção evidencia a perplexidade no rosto da garota. Primeiro em relação ao próprio sexo; em seguida, à gravidez, ao parto e, acima de tudo, ao peso da maternidade. Numa ironia final, vemos que cartas jamais abertas pelos destinatários se mostram mais eloquentes do que seriam se chegassem a ser lidas. Isso basta, ou não?

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

"Karatê Kid": o curioso caso da cópia que melhora bastante o original

Será que vale a pena ver a refilmagem de "Karatê Kid"? Apesar de não ter se tornado um clássico, aquele filme permanece vivo na lembrança de quem tem hoje mais de 30 anos. A garotada dos anos 1980 se emocionou com aquele menino de Nova Jersey interpretado por Ralph de Macchio sendo treinado por um velho mestre vivido por Pat Morita para se tornar um lutador vitorioso de karatê na Califórnia. O interesse da história vinha do fato dessa transformação ser motivada em parte por uma garota e, em parte, pela reação a um bando de karatecas de quem ele era vítima de bullying. Mas o saboroso daquela aventura residia no processo de iniciação nas artes marciais, durante o qual o pequeno herói não apenas aprendia um esporte, mas também entrava em contato com outra cultura.
O protagonista deste novo "Karatê Kid", no entanto, sofre um choque cultural ainda maior porque é um garoto de 12 anos que se muda para a China, onde sofre as mesmas atribulações de seu antecessor e, portanto, precisa aprender kung-fu. Só isso já atribui uma dimensão maior aos obstáculos que ele precisa enfrentar, comparando com a versão de 1984. Até porque seu interprete é o franzino e baixote Jaden Smith, filho de Will Smith com quem vimos contracenando em “À Procura da Felicidade”. Além disso, a figura popular de Jackie Chan no papel do mestre injeta mais humor e realidade no projeto, diminuindo a dose de ensinamentos filosóficos e ampliando a taxa de comicidade. Em resumo, "Karatê Kid" é um caso raro em que a cópia se mostra até melhor que o original.
KARATE KID
The Karate Kid
EUA - 2010 – 140 min. - 10 anos
estreia 27 08 2010
Gênero Ação / infanto-juvenil / comédia
Distribuição Columbia
Direção Harald Zwart
Com Jaden Smith, Jackie Chan e Taraji P. Henson
COTAÇÃO
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B O M

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

"O Último Mestre do Ar" mistura referências históricas como um enredo de escola de samba

"O Último Mestre do Ar" se baseia numa série de desenhos animados exibida na TV, entre 2005 e 2008. São 30 episódios que Night Shyamalan (de “Sexto Sentido”) adaptou e dirigiu para o cinema, sem deixar de lado sua indexação original de espetáculo para crianças. É que, de tal maneira abundantes e misturadas, as informações visuais, antropológicas e históricas do enredo podem ter um uso educativo. Pode ser estimulante uma "caça às origens" de cada elemento do roteiro. Por exemplo: quando um dos personagens usa a palavra "chi" como "o fogo interior", está se referindo à cultura chinesa, ou indiana?
Bem ao gosto desse autor de obras de conteúdo místico, como “A Dama na água” e “Fim dos Tempos”, o universo proposto pelo filme se sustenta em algo que ele chama de “mundo espiritual”. A conexão com os mortais se faz por meio de um “avatar” que, de acordo com o hinduísmo, é a reencarnação de um ser imortal, representante dos deuses na terra. Essa é a função do protagonista: um garoto de 112 anos que, durante um século, permanecera hibernando num bloco de gêlo. Durante essa exagerada soneca, o planeta tinha enveredado por caminhos tortuosos que, agora, cabe a ele endireitar. Para isso, ele deverá enfrentar um jovem vilão interpretado pelo anglo-indiano Dev Patel (imagem acima), que fez o papel central de "Quem quer ser um milionário?" (2009).
Em sânscrito, aliás, a palavra avatāra significa "descida" e se aplica, por exemplo, a Krishna como avatar de Vishnu. Mas no filme a conexão com a tradição indiana termina aí, porque ele se transforma numa saborosa salada visual e gestual que reúne várias outras culturas. O povo do planeta se acha dividido em nações, cada uma delas ligada a um dos quatro elementos e marcada por um tipo de arquitetura e vestimenta. Os homens do ar se parecem com os monges tibetanos; os da terra com os japoneses da Idade Média; e os da água com os russos do tempo de Alexander Nevsky (tal como Eisenstein nos apresentou no filme de 1938). Já os do fogo, que pretendem conquistar os demais pela violência, remetem a uma emblemática uma mistura de chineses, persas e árabes igualmente medievais. E todos praticam artes marciais. Os da terra lutam kung fu no estilo Hun Gar, enquanto os do fogo adotam a linha Shaolin do norte. Já os da água fazem tai chi e os do ar preferem o Ba Gua. Esse excesso de referências extraídas do real acaba montando uma espécie de enigma e caindo no vazio porque, de resto, o filme é um conto de fadas, tanto quanto “O Senhor dos Anéis” e congêneres. Elegante, imaginativo e misterioso, mas um apenas avatar de todos os filmes baseados na cósmica batalha entre o bem e o mal.
O ÚLTIMO MESTRE DO AR
The Last Airbender
estreia 20 08 2010
EUA - 2010 – 10 min. - 10 anos
Gênero Aventura / infantil / história
Distribuição Paramount
Direção M. Night Shyamalan
Com Noah Ringer, Dev Patel e Nicola Peltz
COTAÇÃO
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B O M

“Antes que o Mundo Acabe” é mais um da safra atual de filmes sobre e para adolescentes

“Antes que o Mundo Acabe” da gaúcha Ana Luiza Azevedo é quase um conto de fadas ambientado no interior do Rio Grande do Sul atual. Narra o encontro entre um garoto em crise amorosa e o pai que nunca conhecera. Para justificar o fato de que a comunicação entre eles só acontece por meio do correio, esse pai foi colocado de cama num convento da Tailândia, onde se recupera de malária. Por sua vez, o companheiro da mãe com quem vive nem procura assumir o papel de pai e prefere o de cozinheiro da família, limitando-se a apenas observar os acontecimentos.
Contando com um dedo de Jorge Furtado, que estreou em longa falando também sobre adolescentes (“Houve uma Vez Dois Verões”, 2002), o roteiro de “Antes que o Mundo Acabe” é fluente e engenhoso, ainda que um tanto forçado. Nessa correspondência com o pai, por exemplo, o herói aprende o significado da palavra “poliandria”, apenas para concluir que não deseja participar de uma experiência nesse sentido: para seu desespero, sua namorada começa a se envolver concretamente com o melhor amigo dele e lhe propõe uma relação a três. Isso o leva a fincar pé em suas posições e a se esforçar para fazer prevalecer os princípios em que a acredita.
As questões aí envolvidas são importantes: os primeiros afetos; a diferenciação entre a amizade e o amor; a busca de uma identidade própria e de valores e serem seguidos; o posicionamento pessoal dentro dos novos arranjos familiares. O conflito mais forte, porém, se localiza no interior do personagem e tem a ver com aquilo que o teórico Tzvetan Todorov chamava de “presença insignificante” em confronto com a “ausência significante”. Ou seja, a mãe e novo marido dela podem até se mostrar amigos e solidários, mas o que deflagra no garoto uma decisiva tomada de consciência a respeito dele mesmo − inclusive do ponto de vista ideológico e vocacional − é o relacionamento com o pai longínquo e inacessível, com o qual ele só se relaciona pelo correio.
O mercado atual vem se ressentindo de produções brasileiras capazes de arrancar a mocidade dos videogames e computadores e atraí-la para as salas de cinema. Filmes em que adolescentes funcionam simultaneamente como tema e público-alvo. Afinal, essa faixa etária representa uma valiosa fatia do público, como outras franquias americanas de sucesso, além de “Crepúsculo” (“Harry Potter” e “High School Musical”, por exemplo), podem comprovar. Em função dessa onda, em 2010 chegam ao mercado praticamente juntos, separados por poucas semanas, quatro longas importantes − “Os Famosos e os Duendes da Morte” (Esmir Filho),“Sonhos Roubados” (Sandra Werneck) e “As Melhores coisas do Mundo” (Laís Bodanzky. Para as próximas semanas, aguarda-se "Desenrola", de Rosane Svertman e vários outros. Mas esta é a semana de "Antes que o Mundo Acabe".
ANTES QUE O MUNDO ACABE
Brasil - 2009 – 102 min. - 10 anos
estreia 20 08 2010
Gênero Aventura / adolescentes
Distribuição: Imagem Filmes
Direção Ana Luiza Azevedo
Com Pedro Tergolina, Eduardo Cardoso e Caroline Guedes
COTAÇÃO
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B O M

“Coco Chanel & Igor Stravinsky”: um caso exemplar e impecável de ficção histórica

Quem se interessou pela figura da criadora de moda Coco Chanel na interpretação de Audrey Tatoo (“Coco antes de Chanel”) vai ter uma agradável surpresa com “Coco Chanel & Igor Stravinsky”, do holandês Jan Kounen (“Blueberry – Desejo de Vingança”). O filme focaliza apenas os dois anos, de 1920 a 1922, durante os quais Stravinsky e toda a sua família foram hóspedes da ilustre e poderosa Chanel. O filme economiza falas, porque produz ficção apenas nas brechas abertas entre os fatos documentados.
Numa nota de rodapé em seu livro sobre a estilista, a historiadora Edmonde Charles-Roux informa que ela assumiu discretamente um romance entre os dois. Discrição, aliás, é a palavra, porque o filme pretende essencialmente explorar a identidade estética entre os personagens, numa aventura amorosa concretizada num plano além da carne e da emoção. Na verdade, mais do que um encontro afetivo entre homem e mulher, o que vemos é uma inusitada afinidade de estilos. Num determinado diálogo, inclusive, o roteiro de Jan Kounen insinua que eles, Stravinsky (Mads Mikkelsen, de “007 – Cassino Royale”) e Chanel (Anna Mouglalisl, de “A Vida Nova”) talvez nem entendessem plenamente o trabalho um do outro, do ponto de vista intelectual. Igor chega a dizer a Coco: “você não é artista, é apenas uma fabricante de tecidos”. A ousadia do filme de Jan Kounen é mostrar duas linguagens que se relacionavam de fato, independentemente da mediação das pessoas. Falo do minimalismo, que marca tanto a etapa inicial de Chanel, quanto a peça musical “A Sagração da Primavera” com seus insistentes ostinati. Curiosamente, como resultado do encontro dos dois, essa tendência seria arrefecida, durante o chamado neo-classicismo de Stravinsky e, de modo irônico, na “fase russa” de Chanel. Mas essas informações estão fora do filme. O que “Coco Chanel & Igor Stravinsky” nos oferece é um poderoso e perspicaz docudrama, como vemos na deslumbrante sequência inicial, em que se reproduz a desastrosa estréia de “A Sagração da Primavera”, em Paris no ano 1913, que acompanhamos praticamente em tempo real.
COCO CHANEL E IGOR STRAVINSKY
Coco Chanel & Igor Stravinsky
França - 2009 – 120 min. - 14 anos
estreia 20 08 2010
Gênero docudrama / história
Distribuição Imovision
Direção Jan Kounen
Com Anna Mouglalis, Mads Mikkelsen e Yelena Morozova
COTAÇÃO
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ÓTIMO

terça-feira, 17 de agosto de 2010

“Destinos Ligados” – um drama suave e amargo sobre os mistérios do universo feminino

O diretor e roteirista é o colombiano Rodrigo Garcia, um cineasta já há algum tempo radicado nos EUA, onde escreve e dirige tanto para o cinema quanto para a televisão. Em 2005, ele lançava “Questão de Vida”, que tinha 9 mulheres como protagonistas, consolidando o seu gosto por desenvolver diversas histórias no mesmo roteiro. Com “Destinos Ligados”, ele continua na mesma linha, apenas com um pouco mais de concisão: toma as trajetórias de três mulheres e as unifica por uma condição explicitada no título original (Mother and Child): são relatos de mães e filhas, ou seja, um drama que levanta a questão da maternidade em confronto com o tema da adoção.
Num primeiro núcleo, mãe e filha se acham separadas pelo tempo, pelo espaço e pelas circunstâncias: a advogada vivida por Naomi Watts não sabe quem é a sua mãe biológica – uma enfermeira interpretada por Annette Bening, que a entregara recém-nascida para adoção, há 35 anos, e que ainda vive incompleta e amargurada por causa disso. Já a advogada, por motivos evidentes, nem pensa em viver em família e jamais se imagina como mãe – até engravidar acidentalmente.
Para a primeira, os contatos com o sexo oposto não passam de oportunidades para o prazer ou para a ascensão social. Para a segunda, todos os homens do planeta representam uma potencial ameaça para a sua estabilidade psíquica. A primeira tarefa do escritor será dinamizar esses dois mundos, de tal modo que o seu possível encontro não desemboque no melodrama do lugar comum. Como mediação (tomando essa palavra agora em moda em sua conotação mais simples) entre eles, desenvolve-se outro núcleo dramático, formado por um casal que, apesar de relativamente jovem, não consegue ter filhos, o que leva a esposa a se tornar obcecada com a idéia de adotar uma criança.
A segunda tarefa é fechar esse leque harmoniosamente, de maneira plausível e o mais emocionante possível. Nesse aspecto é preciso observar os nomes que acompanham Rodrigo Garcia, como produtores executivos nesse projeto: os mexicanos Guillermo del Toro (“O Labirinto do Fauno”) e Alejandro Inarritu (“Babel”), este um especialista em desenvolver roteiros como “Destinos Ligados”, em que uma única história é conduzida por diferentes personagens. A origem desse estilo é literária e pode ser traçada a partir de “Ponto e Contraponto” (1928), de Aldous Huxley, que o escritor gaúcho Érico Veríssimo traduziu em edição brasileira, dois anos antes de escrever “Caminhos Cruzados” (1935). É lá que pode ser encontrada essa técnica que consiste em mesclar pontos de vista diferentes, tanto do escritor quanto das personagens, tratando-as como fragmentos de uma narrativa mais abrangente e que evolui sem que exista um centro catalisador no corpo do texto.
Aqui esse procedimento se acha a serviço de uma dramaticidade suavemente amarga, ou “sweet and sour”, como se costumava dizer em Hollywood, no tempo em que o pai de Rodrigo Garcia, o escritor Gabriel Garcia Márquez lançava a sua obra-prima “Cem Anos de Solidão” (1967). Neste tempo em que a comunicação se faz na instantaneidade dos meios digitais, é curioso que a literatura ainda seja uma influência formal e que a trama também use o artifício de dolorosas cartas, escritas por duas desconhecidas, para conduzir as tramas paralelas.
DESTINOS LIGADOS
Mother and Child
EUA/Espanha - 2009 – 122 min. - 12 anos
estréia 13 08 2010
Gênero Drama
Distribuição Playarte
Direção de Rodrigo Garcia
Elenco Annette Bening, Naomi Watts, Samuel L. Jackson
COTAÇÃO
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B O M

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

"A Origem” derruba as barreiras entre os filmes de arte, o cinema de ação e o vídeo-game

Primeiro, o inglês Christopher Nolan ganhou notoriedade com dois thrillers que todos se apressaram em aplaudir como “filmes de arte” desabrochando no solo esteticamente estéril de Hollywood: “Amnésia” (2000) e “Insônia” (2002). Depois, vieram os filmes de Batman (“Batman Begins” – 2005, e “O Cavaleiro das Trevas” – 2008), que lhe trouxerem prestígio nos meios culturais e influência entre os executivos da indústria. Agora, ultrapassada essa década de crescimento, ele amadurece e nos apresenta “A Origem”, novamente um filme autoral, como os do início da carreira. Só que dotado de um orçamento que lhe permitiu quase tudo, em termos de elenco, recursos de produção e, principalmente, liberdade para filmar a história que bem entendesse.
Ele reúne astros situados no topo da lista, como Leonardo DiCaprio e Marion Cottilard, a outros que estão chegando lá, como Ken Watanabe (“Cartas de Iwo Jima”), Ellen Page (“Juno”) e Cillian Murphy (“Extermínio”), e alguns já praticamente remidos, como Michael Caine e Tom Berenger para filmar um projeto absolutamente pessoal. Um tipo de experiência que Luis Buñuel (“Um Cão Andaluz” – 1928) e os surrealistas ousaram praticar, com os recursos mínimos dos anos 1920. E que os metafísicos, na linha de Alain Resnais (“O Ano Passado em Marienbad” – 1961) e Wojciech Has (“Os Manuscrito de Saragoça” – 1965) deram continuidade, já movidos pela ousadia tornada obrigatória nos anos 1960.
Trata-se de transformar em cinema a diáfana e intangível matéria dos sonhos. No trailer do filme, o personagem de Leonardo DiCaprio explica a sua atividade de modo aparentemente simples: ele é um especialista em se infiltrar na mente das pessoas e invadir seus sonhos, como quem penetra numa festa sem ser convidado. Mas ao longo do roteiro escrito pelo próprio Nolan, tudo vai ficando cada vez mais complicado à medida que as pessoas participam dos sonhos das outras, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
Inútil buscar uma lógica para esse procedimento que, para o protagonista e seus comparsas, é corriqueiro – desde que tenham em mãos determinados produtos químicos e uma misteriosa engenhoca que mantém um conjunto de sonhadores plugados num único devaneio. Somente depois que entendemos ou − com a ajuda de impressionantes efeitos de computação gráfica − julgamos entender a mecânica dos sonhos partilhados, se inicia o núcleo do filme que acontece durante uma viagem de avião entre a Europa e os Estados Unidos.
Durante esse percurso, os personagens vivem um sonho que se manifesta dentro de outro sonho e que, por sua vez, os conduz a uma terceira camada de sonhos. Nesse contexto totalmente onírico, eles vivem peripécias das mais mirabolantes, enfrentando centenas de inimigos em perseguições de automóveis e tiroteios que lembram imediatamente a frenética ação dos vídeo-games, em que a regra básica é atirar nos sempre anônimos oponentes, no ritmo em que eles forem aparecendo. E, assim, ir passando de um “nível” do jogo para outro que, afinal, é experimentado como um fim em si mesmo. Independente do enredo central que, de resto se mostra totalmente integrado à tradição do cinema hollywoodiano, temos a sensação de participar de um longo discurso sobre a vida virtual.
O motivo principal desse herói visceralmente americano é reconstituir a família desintegrada e juntar-se aos filhos. Mas a trama vai se revelando sempre mais falsa e vazia, na medida em que se complica nas peripécias e batalhas incessantes que, no plano do real, só existem na cabeça de um grupo de viajantes dormindo nas poltronas de um avião. Nesse ponto, saltamos de volta para 1880, quando Gustave Flaubert concluía o irônico e demolidor “Bouvard e Pécuchet”, que mais tarde seria considerado o romance fundador do modernismo e precursor dos estudos semióticos. Nele, a narrativa também se esgarçava e questionava a si mesma, enquanto seus personagens experimentavam a novidade de uma vida vicária, ou seja, virtual. Um dia, os amigos Bouvard e Pécuchet se encontram numa estação, com o objetivo de viajar para outro país. Mas em seguida desistem de embarcar, ao concluir que nenhum trajeto seria tão interessante quanto aquele com o qual eles já tinham sonhado. Nenhum sentido ou aprendizado poderia resultar de qualquer de seus deslocamentos pelo espaço. Ou seja, conduzidos por Christopher Nolan, estamos novamente regressando ao princípio, à “Origem” de tudo o que vem acontecendo com a cultura ocidental desde o fim do século 19.
A ORIGEM
Inception
Estreia 06 08 2010
EUA / Reino Unido 2010 – 148 min. 14 anos
Gênero Ação / fantasia
Distribuição Warner Bros.
Direção Christopher Nolan
Com Leonardo DiCaprio, Marion Cotillard,
Ellen Page, Ken Watanabe, Cillian Murphy
COTAÇÃO
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Ó T I M O

domingo, 1 de agosto de 2010

“Ponyo" é a criação recente de Miyasaki, o maior ídolo de todos os animadores.

No desenho animado “Ponyo - Uma Amizade Que Veio do Mar” aparece uma deusa do mar que lembra muito a figura familiar de Iemanjá, tal como foi divulgada no Brasil pelos devotos da Umbanda, com seu longo manto azul e rosa. Essa coincidência pode ser interpretada como manifestação da importância dos arquétipos que ultrapassam os limites nacionais. Na verdade, a animação de Hayao Miyasaki vem se tornando cada vez menos japonesa e cada vez mais autoral e misteriosa: “A Viagem de Chihiro” (2003) era um conto de horror profundamente ligado à tradição nipônica. Já “O Castelo Animado” (2005) trazia a intenção explícita de trabalhar com um imaginário típico dos contos de fada da Europa ocidental, até porque se baseava num livro de Diana Jones, escritora inglesa que aprendeu com J. R. Tolkien (“Senhor dos Anéis”) e C. S. Lewis (“Crônicas de Narnia”).
Mas o desenho do rosto da heroína infanto-juvenil é sempre igual: aquela face redonda, de nariz quase inexistente e um olhar ao mesmo tempo esperançoso e perplexo. A primeira vista personagem central é o garotinho Sosuke, mas a protagonista é mesmo Ponyo, uma habitante do oceano que tem o rosto de menina e o corpo de peixe. Ao entrar em contato com o mundo terrestre, ela se encanta com o menino e toma a forma de uma garotinha com a mesma idade dele. É como se fosse lenda do boto ao contrário, porque mesmo com tão pouca idade, o caso dos dois é pra valer. Tanto que provoca uma espécie de dilúvio e traz à vida espécies marinhas da pré-história. Para viajar confortavelmente no mundo de Miyasaki a primeira regra é se render à excentricidade deste que é considerado (pela maioria dos próprios desenhistas) o maior animador vivo e esquecer a lógica ocidental.
PONYO UMA AMIZADE QUE VEIO DO MAR
Gake no ue no Ponyo
Japão 2008 – 92 min. Livre
Gênero Animação / fantasia
Distribuição Playarte
Direção Hayao Miyazaki
COTAÇÃO
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EXCELENTE